O CÔNJUGE NO NOVO CÓDIGO CIVIL
“Em
um código os artigos se interpretam uns pelos outros”, eis a primeira regra de
Hermenêutica Jurídica estabelecida pelo jurisconsulto Jean Portalis, um dos
principais elaboradores do Código de Napoleão.
Desse
ensinamento básico me lembrei ao surgirem dúvidas quanto ao verdadeiro sentido
do Inciso I do Art. 1829 do novo Código Civil, segundo o qual a sucessão
legítima cabe, em primeira linha, aos “descendentes, em concorrência com o
cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão
universal de bens ou no da separação obrigatória de bens (Art. 1640, parágrafo
único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver
deixado bens particulares”.
Há
quem entenda que, desse modo, o cônjuge seria herdeiro necessário também na
hipótese de ter casado no regime de separação de bens (Art. 1.687), o que não
me parece aceitável.
Essa
dúvida resulta do fato de ter o Art. 1.829, supra transcrito, ter excluído o
cônjuge somente no caso de “separação obrigatória”. A interpretação
desse dispositivo isoladamente pode levar a uma conclusão errônea, devendo,
porém, o intérprete situa-lo no contexto sistemático das regras pertinentes a
questão que está sendo examinada.
Antes,
todavia, de dar as razões pelas quais entendo que o cônjuge não adquire o
direito à herança pela morte do outro, se casados no regime de separação de
bens, julgo necessário lembrar por qual motivo o novo Código Civil inovou na
matéria, elevando o cônjuge à categoria de herdeiro necessário.
É
que, durante dezenas de anos vigeu no Brasil, como regime legal de bens, o
regime de comunhão universal, no qual o cônjuge sobrevivo não concorre na
herança, por já ser “meeiro”.
Com
o advento da Lei 6.515, de 21 de dezembro de 1977 (Lei do Divórcio), o regime
legal da comunhão de bens no casamento passou a ser o da comunhão parcial.
Ampliado
o quadro, tornou-se evidente que o cônjuge, sobretudo quando desprovido de
recursos, corria o risco de nada herdar no tocante aos bens particulares do
falecido, cabendo a herança por inteiro aos descendentes ou aos ascendentes.
Daí a idéia de tornar o cônjuge herdeiro no concernente aos bens particulares
do autor da herança.
Recordada
a razão pela qual o cônjuge se tornou herdeiro, não é demais salientar a
importância que o elemento histórico tem no processo interpretativo. Tendo,
pois, presente a finalidade que o legislador tinha em vista alcançar, estamos
em condições de analisar melhor o sentido do mencionado Inciso, mantida que
seja a sua redação atual.
Nessa
ordem de idéias, duas são as hipóteses de separação obrigatória: uma
delas é a prevista no parágrafo único do Art. 1.641, abrangendo vários casos; a
outra resulta da estipulação feita pelos nubentes, antes do casamento, optando
pela separação de bens.
A
obrigatoriedade da separação de bens é uma conseqüência necessária do pacto
concluído pelos nubentes, não sendo a expressão “separação obrigatória”
aplicável somente nos casos relacionados no parágrafo único do Art. 1.641.
Essa
minha conclusão ainda mais se impõe, ao verificarmos que – se o cônjuge casado
no regime de separação de bens fosse considerado herdeiro necessário do autor
da herança – estaríamos ferindo substancialmente o disposto no Art. 1.687, sem
o qual desapareceria todo o regime de separação de bens, em virtude de conflito
inadmissível entre esse artigo e o de n° 1.828, I, fato que jamais poderá
ocorrer em uma codificação, à qual é inerente o princípio da unidade
sistemática.
Entre
uma interpretação que esvazia o Art. 1.687 no momento crucial da morte de um
dos cônjuges, e uma outra que interpreta de maneira complementar os dois
citados artigos, não se pode deixar de dar preferência à segunda solução, a
qual, ademais, atende à interpretação sistemática, essencial à exegese
jurídica.
Se,
no entanto, apesar da argumentação por mim aqui desenvolvida, ainda persistir a
dúvida sobre o Inciso I do Art. 1.828, o remédio será emenda-lo, eliminando o
adjetivo “obrigatória”. Com essa supressão o cônjuge sobrevivente não
teria a qualidade de herdeiro, “se casado com o falecido no regime de comunhão
universal, ou no de separação de bens”. Aproveitar-se-ia, outrossim, a
oportunidade para eliminar a errônea remissão ao parágrafo único do Art. 1.640.
Apreciado
esse ponto essencial, cabe assinalar que outra inovação do novo Código Civil a
favor do cônjuge sobrevivo é a prevista no Art. 1.832, de acordo com a qual ele
concorre com os descendentes, tendo direito a “quinhão igual ao dos que
sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da
herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer”.
Além
disso, pelo Art. 1.857, “concorrendo com ascendentes em primeiro grau, ao
cônjuge tocará 1/3 (um terço) da herança; caber-lhe-á a metade desta se houver
um só ascendente, ou se maior for aquele grau”.
Por
outro lado, em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão
por inteiro ao cônjuge sobrevivente, aperfeiçoando-se assim o disposto no Art.
1.611 do Código de 1916.
Ademais,
a nova Lei Civil manteve a disposição do Código revogado quanto a caber ao
cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, sem prejuízo
de sua participação na herança, o direito real de habitação relativamente ao
imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela
natureza a inventariar.
12.04.2003