VARIAÇÕES  SOBRE  A  NORMATIVIDADE

MIGUEL REALE

 

                  Há fenômenos sociais tão relevantes na história da humanidade que, por serem expressão expontânea e comum de agir do homem desde tempos imemoriais, acabam deixando de ser objeto primordial de sua atenção. Dentre eles nenhum sobreleva em termos de importância o da normatividade, apesar de constituir uma das notas essenciais e distintivas do próprio ser humano, podendo-se dizer que onde está o homem, aí está a regra.

                  Assim como se diz que o homem é um ser pensante – e o “penso, logo existo” proclamado por Descartes é bem o sinal dessa verdade – também se pode afirmar que a “norma sui” é a característica de cada um de nós.

                  Ela não é mero produto de nenhuma vontade exterior mesmo no início de nossa formação cultural, porque com ela se confunde, desde quando o homem passou a agir como algo de distinto no seio da natureza, diversificando-se dos outros animais. No ato de lançar a primeira pedra contra um agressor, ou no de criar o primeiro utensílio em função de atividades vitais, neles estava imanente a função de regrar-se, filha primeira da memória, muito embora ainda não tivesse consciência de sua auto-afirmação, dando origem à cultura.

                  Tudo se passou expontaneamente, e inadvertidamente, dando nascimento ao costume, que é a primeira regra de conduta do homem primitivo, que por não ter consciência de seus atos, é considerado pré-histórico.

                  Desse modo, assim como Goethe disse que “no princípio há a Ação” podemos dizer que “no princípio há a Regra”, como medida da ação. Ela veio assumindo as mais diversas configurações ao longo do tempo, desde as religiosas e éticas até as de mera finalidade utilitária, desde as político-jurídicas até as artísticas, desde as cívicas às militares. Foi assim que se iniciou o grande diálogo entre o saber e a técnica, ora predominando uma, ora a outra, tendo sempre como objetivo o comportamento humano, como expressão da normatividade.

                  O certo é que sempre há uma norma de conduta, traçando limites obrigatórios ou facultativos de ação para os indivíduos e as coletividades. Indo às origens da cultura, encontramos a potência inicial do mito, do imaginário e inexplicável e, porque inexplicável, dotado de poderosa força cogente. É sabido que a cada forma de obrigatoriedade iam sendo estabelecidas distinções de categorias sociais ou classes, a dos sacerdotes em correlação com a dos políticos e guerreiros, muitas vezes se fundindo ou se confundindo umas com as outras.

                  A cada uma dessas formas de vida social ia correspondendo uma forma de direito, com a sua correlata forma de legislação. A primeira expressão desta foi costumeira ou consuetudinária, emergindo a norma da experiência de todos os dias, como resultado empírico da prática, do que se “praticava” no viver comum.

                  Seria impossível em um artigo traçar as linhas da normatividade na experiência social, de sua infinita historiografia, razão pela qual opto por uma delas, seja pela sua universalidade, seja por ser a de meu melhor conhecimento. Refiro-me ao Direito como fato humano, dando lugar a várias “ciências”, como a filosófica que indaga tanto de seus fins últimos como de suas raízes;  a empírico-positiva que disciplina nosso comportamento em função concomitante do legal e do justo; e, finalmente, a sociológica que, hoje em dia, é cada vez mais antropológica. Por outro lado, o que acontece na esfera jurídica corresponde ao que ocorre nos demais setores da atividade humana.

                  Pois bem, quem diz direito acaba tratando também do torto, assim como a idéia do justo se casa com a do injusto. Daí uma primeira diferença entre os juristas e operadores do direito em duas grandes famílias: a que elege, com sua referência, a perenidade ou supremacia do valor da justiça; e a do que se contenta com o relativismo  jurídico. Quando se opta pela primeira posição, se admite a existência de um Direito Natural, o qual fixa normas de validade universal; quando se prefere a segunda, somente se aceita o Direito Positivo, que se contenta com o que vale em função de múltiplas conjunturas, e, por isso mesmo, só reconhece normas de validade relativa. São essas as duas formas essenciais de normatividade jurídica.

                  Costuma-se dizer que quem elege a primeira posição é, geralmente, de tendência conservadora, enquanto que seriam progressistas os adéptos da segunda, mas a história dos sistemas jurídicos e de sua aplicação não concorda com essa distinção, havendo jusnaturalistas abertos às novidades do futuro, e positivistas amantes do statu quo.

                  Se me perguntarem se aceito regras eternas ou inatas – que subordinariam a si todas as demais – responderia logo negativamente; mas diria também que nem tudo na vida humana é variável e incerto.

                  Penso que devemos procurar uma resposta às duas espécies de normas supra expostas procedendo ao estudo objetivo da experiência, contra a qual não pode haver ciência.

                  Ora, por mais que varie o mundo das regras de conduta, devemos reconhecer que há normas que adquirem certa estabilidade, que as defendemos como se fossem inatas, como é o caso das que protegem a pessoa humana, a democracia ou o meio ambiente necessário a uma existência sadia.

                  Nessa forma de raciocínio, estamos afirmando uma relação fundamental entre o conceito de norma e a idéia de valor. É, penso eu, nesta palavra que se encontra o sentido de uma resposta satisfatória, pois toda norma pressupõe um valor, sendo, pois, axiológica toda teoria da normatividade.

                  Ora, o homem é  e  vale, e só é enquanto vale. Os valores que adquirem, por assim dizer, um sentido de permanência vital (e vital não apenas no seu sentido biológico) eu os considero “invariantes axiológicas”, e são “como se fossem (note-se) inatos e eternos. No meu entender, basta essa situação para se legitimar a sua permanência e salvaguarda no mundo da normatividade.

04/06/2005