VARIAÇÕES  SOBRE  VOCAÇÃO

MIGUEL REALE

 

                   É freqüente a alegação de que não se trabalha com afinco e entusiasmo por não estar a atividade exercida em consonância com sua vocação. A bem ver, prevalece a idéia de que, ao nascer, cada ser humano chega para exercer uma profissão determinada, para a qual estaria sendo chamado.

                   Não há dúvida que a palavra vocação vem do latim vocatio que quer dizer chamado, mas não creio que, na maioria dos casos, haja sintonia entre essa esperança e a forma de trabalho a ser executada.

                   Seria ótimo se houvesse sempre correspondência entre a natural aptidão de agir e o ofício que nos cabe levar a cabo com dedicação e o devido conhecimento. Para tanto seria necessário que existisse “harmonia pre-estabelecida”, como a traçada por Leibniz para boa ordem do mundo.

                   Não ignoro que, muitas vezes, existem vocações resultantes de múltiplos fatores, sobretudo em se tratando de vínculos familiares, com filhos, netos e bisnetos seguindo a carreira de seus antepassados, mas a regra é o difícil e acabrunhador desafio com que se defrontam adolescentes e jovens no momento de escolher sua profissão.

                   A vocação é uma condição psicológica das mais complexas, pois depende de uma série de fatores, a começar da psique individual até as circunstâncias e conjunturas em que ela atua.

                   Antes, porém, de tratar desse tema, é necessário reconhecer que, efetivamente, há uma infinidade de vocações condicionadoras de nossa forma de agir. Nessa ordem de idéias tenho afirmado que, assim como há um DNA identificador de nossa individualidade biológica, há também uma inclinação valorativa no ser pessoal de cada um de nós, que poderíamos denominar cifra axiológica. De certo modo, se nasceria para ser sacerdote, cientista, artista, etc.

                   Isto quer dizer que alguns são naturalmente atraídos por determinado valor, que vai do sacro ao profano, e, nesta categoria, com inúmeros sentidos de vida, desde a preferência por ações dependentes de educação superior até as que exigem apenas o ensino fundamental.

                   Por outro lado, há fatores físicos que determinam, de antemão a atividade profissional, como se dá na área do atletismo, culminando na formação dos melhores pugilistas, cestinhas, jogadores de futebol, etc.  Todavia, sem talento não há atleta excelente, sendo a conjugação pscio-física condição essencial do êxito, máxime nas competições de conjunto.

                   Feitos esses reparos, é indispensável salientar que a vocação é um dom que exige preparo e educação. No mundo não se recebe nada de graça, sem estudo e dedicação.

                   Nesse sentido, cabe advertir que é dever dos pais orientar os filhos, tão logo percebam neles capacidade de realizar-se nesta ou naquela outra esfera de conhecimento e de ação. O mesmo se diga dos mestres responsáveis, muitas vezes causa determinante dos grandes triunfos de seus discípulos. Não creio possa haver maior mérito no magistério do que esse de saber descobrir a vocação dos jovens, preparando-os para se realizarem de maneira excepcional.

                   Múltiplos são os motivos determinantes das vocações. No meu caso pessoal, tudo indicava que seria o sexto médico da família, sendo esse o desejo de meu pai, mas uma visita oportuna a um hospital me fez ver que esse não era o meu caminho, pesando também em minha escolha a imagem que formara da Faculdade de Direito do largo de São Francisco, em 1930 ainda estabelecimento federal, fundado por Don Pedro I, em 1827, para o estudo de Jurisprudência, mas que, na realidade, se convertera em centro de cultura humanista, dada a inexistência de institutos de Filosofia ou de Letras. Talvez tenha sido essa a razão principal de minha preferência, seduzido que estava pelas figuras de Alvares de Azevedo e Castro Alves, mais do que pelas dos juristas...

                   Como se vê, há algo de mistérioso na escolha de uma profissão, mas o essencial é que, feita opção por uma via, nela devemos concentrar as forças do sentimento, da inteligência e  da vontade. Como acontece na realização de todos os valores que se tornam fins existenciais, há que construir o seu caminho com amor e aturado estudo.

                   Ademais, mesmo quando se dá preferência por um rumo de vida sem anterior atração especial, esta nasce e se fortalece com a dedicação e a perseverança. Múltiplos são os exemplos dessa identificação ética e “simpatética” – para empregarmos uma expressão de Adam Smith – constituída a posteriori, no exercício profissional.

                   Tudo, em suma, deve ser feito pela excelência de uma profissão, evitando-se, no entanto, de tornar-se dela escravo, com suas exigências prevalecendo sobre os infinitos valores culturais que dignificam a existência humana.

                   Há pessoas que se trancam no círculo de ferro de seu mister quotidiano, iludindo-se de estar se realizando plenamente, quando, a bem ver, se esquecem de que é a visão geral e unitária dos problemas que nos permite perceber as peculiaridades do trabalho particular que nos ocupa.

                   A vida humana, meu caro leitor, é uma seqüência de balanceamento de valores, o qual vai formando o que denomino “invariantes axiológicas”, ou seja, constantes valorativas que parecem inatas, mas que, em última análise, são o fruto da experiência histórica.

                   O “valor ecológico”, a mais recente das “invariantes axiológicas”, é dos mais relevantes, mas deve se subordinar às necessidades essenciais da pessoa humana, pois é em razão desta que se protege o meio-ambiente e não em si e por si mesmo.

                   Refiro-me a tal fato porque me preocupa a existência de membros do Ministério Público que, cedendo a uma desorientação profissional, sacrificam, não raro, valores existenciais a pretexto de estarem defendendo a natureza.

02/08/2003