VARIAÇÕES  SOBRE  O  TÉDIO

MIGUEL REALE

 

                  É nas “épocas de nojo”, como a que estamos vivendo, como conseqüência da clamorosa e criminosa tentativa do PT de apossar-se, como partido único, da totalidade dos quadros administrativos da Nação, que devemos analisar o fenômeno do tédio.

                  Há o tédio pessoal ou subjetivo, que ocorre quando algum fato grave vem ferir nossa sensibilidade, dando a impressão de que toda uma fase de nossa vida findou, deixando poucas esperanças de recuperação. É o momento em que sentimos um vazio em nossa vida interior, com vontade de abandonar todos os motivos que fazem de nossas resoluções uma atividade vital.

                  Felizmente, essa pausa no “mundo da vida” (Lebenswelt) que se confunde com nossa própria individualidade – é pouco duradoura e, quando menos esperamos, renasce a vontade de viver, ou seja, de ter iniciativas, de reconhecer que nos cabe fazer algo.

                  Como se vê, o tédio é a negação e a antítese da vocação para agir, o contrário ao impulso ou à intenção de existirmos para obter algum resultado, algum fim, realizando um valor.

                  No fundo, viver é agir em um mundo de valores, e, conforme a escolha neste, a nossa existência adquire um sentido. Donde se conclui que o tédio é a perda, passageira ou duradoura, do sentido da vida.

                  Coisa bem mais grave acontece, todavia, quando é uma coletividade inteira que, repentinamente, se defronta com acontecimentos que a deixam como que paralisada, sem saber encontrar a razão de sua ruptura com a confiança em si e nos outros. É o tédio coletivo, pelo qual nos achamos envolvidos como náufragos a se debaterem contra a violência das ondas.

                  Foi, confesso, o que senti – em um primeiro momento – quando se desencadeou no cenário social e político do Brasil, a torrente de notícias sobre o mensalão e os desvios da “caixa 2”, com que o Partido dos Trabalhadores traçou o plano de assenhorear-se do poder, em conluio com seus asseclas, pondo termo ao processo democrático, que, após duros vinte anos, estávamos consolidando.

                  Já temos, agora, provas bastantes dos abusos políticos e financeiros praticados, e se ainda não esclarecemos todas as origens dos recursos desviados, de uma coisa estamos certos: da existência de um plano que somente poderia ter início com o apoio do Presidente da República, ou de alguém por ele, à revelia dele. Esse alguém todos percebem quem seja e tem todas as características pessoais adequadas às suas aspirações de desmedido mando e que, agora, pretende fugir da inevitável pena de cassação de mandato sob a alegação de que, na época inicial, não estava exercendo o mandato de deputado, mas sim as funções de ministro...

                  Que impressionante coincidência!

                  Elimine-se a idéia de plano preconcebido e tudo perde significado!

                  Pois bem, quando eclodiu a referida crise, a gente brasileira sentiu um tédio global, um nojo, um fastio repentino, ou seja, “vergonha de ser brasileiro”, tão assombrosos eram os atos praticados para destinar a um só partido a riqueza da nação.

                  Mas o tédio global em geral passa depressa, gerando a reação necessária, o que, em artigo anterior, denominei a resposta da Lei. Já é chegada a hora do ajuste de contas, da punição dos responsáveis, sob pena de deixarmos aberto o caminho para novas investidas.

                  É, por isso que o povo viu com assombro o prejulgamento precipitado do presidente da Câmara dos Deputados de que as condenações devem ser brandas! Todos reconheceram que se trata do juízo de um parlamentar medíocre, temeroso da gravidade das penas...

                  A hora não é absolutamente do silêncio, mas do processo tão sereno quanto objetivo e severo.

                  Por essas razões, foi com a maior  perplexidade que ouvi o pronunciamento da chamada “inteligência do PT”, quase toda formada de professores marxistas da USP, tendo como líder Antonio Candido. Quem teve a incumbência dessa desoladora mensagem foi Marilena Chaui que não podia ser mais desastrada.

                  É exatamente quando surgem dificuldades para apuração das responsabilidades, que mais devem falar as pessoas intelectualmente responsáveis, apontando caminhos para a descoberta do crime, rumos que levem à apuração dos que praticaram o delito.

                  Fora disso, o que há é apenas solidariedade hipócrita, exercício malicioso de retórica!

                  Se não há dúvida de que houve crime contra o sistema financeiro nacional, lavagem de dinheiro, falsos empréstimos, a existência de dúvidas é uma desculpa esfarrapada, em prejuízo da causa democrática.

                  Andaram bem, por consegüinte, aqueles que promoveram a coligação da mocidade com as entidades representativas do País, lançando um Manifesto reclamando a punição inexorável dos culpados.

                  O passado da “Maria Antónia” teve momentos de grandeza em prol da democracia, e não é, agora, quando o País sofre uma das mais nojentas formas de corrupção, que seus pretensos “herdeiros” optam pelo silêncio.

                  O silêncio tem sempre um significado: ou é de anuência, ou de confissão; ou é de astuciosa omissão.

                  Para que a gente brasileira possa vencer o tédio de que foi tomada só há um caminho: o da ação movida pelo anseio da lei e da justiça.

                  É imprescindível, porém, que a apuração das responsabilidades não fique adstrita ao Poder Legislativo, e não deixe de atingir os que, fora dele, atentaram contra os valores mais altos do Estado Democrático do Direito.

                  Não se trata de impedimento do presidente da República, pois, como disse artigo de fundo deste jornal, “ruim com ele, pior sem ele”. O que desejamos é apenas que o Brasil não seja presa de tédio coletivo, com vergonha de si mesmo.

10/09/2005