VARIAÇÕES SOBRE A SAÚDE
MIGUEL
REALE
Dentre os valores de fundamental importância consagrados pela história
da civilização sobressai o relativo à saúde, da qual o homem teve consciência
imediata, tão frágil é ele no tocante aos males do corpo e da mente e ante as
forças adversas da natureza.
Travou-se
desde logo uma rude e contínua batalha entre os valores vitais e os fatores
negativos que determinam a morte, aquelas empenhadas em preservar e salvaguardar
a existência humana, e estas tendentes a extinguí-la, pondo termo a um projeto
existencial.
É
claro que nessa luta, que se perde na noite dos tempos, o homem recorreu
primeiro aos deuses, através de múltiplos processos, desde as mais elementares
formas de feitiçaria até atos pios de contrição e de confiança, sem prejuízo
de tentar debelar a doença mediante elementares processos empíricos que uma
geração legava a outra, compondo conhecimentos inspirados na experiência.
A
história da luta pela saúde confunde-se, pois, com a história mesma do homem,
surgindo a medicina como a ciência germinal, cujas conquistas, hoje em dia, nos
assombram.
É
nesse cenário que se situam os hospitais, as “casas de saúde” que
assinalam distintos e sempre crescentes momentos de processo civilizador.
Essas
idéias vieram-me à cabeça nos últimos vinte dias passados no grande Hospital
Albert Einstein, confiado à sabedoria e à dedicação de médicos que tudo
fizeram para que eu pudesse voltar à vida normal, a meus estudos e afazeres
cotidianos.
Foi
então que me dei plenamente conta dos liames entre a medicina e a civilização
desde os primeiros passos do ser humano sobre a face da Terra, constituindo ela
a ciência originária da qual derivaram todas as outras de base experiencial.
Quantos
requisitos são indispensáveis à profissão de médico, a começar pela aceitação
de um desafio acabrunhante entre a vida e a morte!
Quanto
saber e quanta experiência são necessários pelo acerto de um diagnóstico,
ponto essencial de partida para a recuperação da saúde!
É
por isso que me preocupa a apressada criação de Faculdades de Medicina,
desprovidas de laboratórios e de biblioteca especializada, com a função
docente confiada a mestres de reduzido saber e experiência.
Se
há um curso universitário que requer cuidados e exigências especiais é esse
da formação do médico, que não pode se
especializar apressadamente neste ou naquele ramo profissional sem antes
ter forrado sua cultura com os ensinamentos de anatomia e demais ciências que
constituem as bases bio-médicas.
Infelizmente,
no plano educacional em geral, e especialmente no universitário, estamos
tomados pela expansão numérica dos quadros de ensino, esquecendo-nos da
proficiência dos professores e do real preparo do estudante para a compreensão
e assimilação de conhecimentos científicos e técnicos.
Dir-se-á
que a aparelhagem mais avançada de que hoje dispõem a medicina, suprirá as
deficiências culturais, mas há nesse raciocínio um erro palmar, porque no
centro de toda a problemática da saúde está a pessoa do médico em condições
de aplicar seus conhecimentos e diagnosticar o mal de quem o procura.
Alegar-se-á,
repito, que as colossais conquistas atuais da medicina, fruto de pacientes e
atiladas perícias de laboratórios, de especializados seminários e de aulas de
verdadeira sapiência, vieram facilitar a atuação dos que atuam na área da saúde,
valendo-se de aparelhagem cada vez mais sofisticada, mas todo esse contorno técnico-científico
não suprime as sábias auscultações do funcionamento dos órgãos do
paciente, que requerem subtil capacidade cognoscitiva, resultante da maturidade
profissional.
Nem
seria necessário lembrar que, nos casos mais graves, a decisão de internação
do doente em um hospital é de capital relevância para sua recuperação.
Suspenso
de suas habituais atividades, torna-se o doente “objeto” de constantes
visitação e assistência, não podendo contrapor a sua vontade às decisões
do médico e de seus colaboradores.
É
então que se compreende a missão dos hospitais, munidos dos mais modernos
instrumentos de informação técnica, e contando com enfermeiros experientes,
que criteriosamente executam as ordens recebidas, sem se esquecer os auxiliares
de enfermagem que se identificam com os doentes, cujas exigências compreendem e
justificam.
Quatro
colunas sustentam a entidade hospitalar, desde o seu corpo clínico até o mais
humilde de seus colaboradores; desde os serviços administrativos que operam com
previsão e eficiência até a aparelhagem técnica que penetra nos mistérios
de nossos males, representando o resultado acumulado de indagações que se
situam na vanguarda das realizações culturais.
Compreende-se,
assim, a razão pela qual a Constituição de 1988 dedica todo um capítulo
minucioso ao problema da saúde, visando garantir a todos o rápido acesso
universal e igualitário às fontes e serviços que surgem em prol dos valores
essenciais da vida. O ideal constitucional
é um sistema único de saúde (SUS), financiado por recursos oficiais e
privados.
Seus
fins são de tal natureza que quaisquer desvios para atender não raro a
interesses pessoais ou secundários constituem lesão enorme, pela qual deviam
responder criminalmente os administradores encarregados da área da saúde.
Para
que as altas finalidades desta possam ser alcançadas é indispensável que o
Estado, nas suas três ordens de poder, federal, estadual e municipal, tudo façam
para evitar as crises hospitalares, bem como auxiliar o insubstituível encontro
pessoal dos médicos com os doentes, com plano para redução do preço dos remédios.
Nem
fica por último o zelo pelas pesquisas científicas e tecnológicas, cujo
desenvolvimento assinala o grau do progresso real de um povo.
Nesse
ponto há muito que fazer no Brasil, apesar de já termos demonstrado, em vários
setores, a capacidade intelectual e
inventiva de nossa gente. Trata-se de uma obra que se distingue pela imaginação
criadora e pelo amor aos indivíduos e à coletividade.
Não
devemos, em verdade, jamais esquecer o sábio ensinamento de Jakson de
Figueiredo de que a vida humana é a única oportunidade que temos de aperfeiçoar-nos.
Com tal advertência, compreendemos o que médicos e hospitais representam no
decurso da história, cooperando para a continuidade de projetos existenciais.
19/06/2004