VARIAÇÕES SOBRE A JUSTIÇA
MIGUEL REALE
Pode parecer estranho que, após mais de sete décadas de convivência
com a problemática jurídica, procurando alcançar seus fundamentos, eu ainda
sinta necessidade de tecer considerações gerais sobre a justiça. Nada, no
entanto, me parece tão criticável como, logo no início dos estudos jurídicos,
pretender-se expor a própria teoria da justiça,
às vezes após longa exposição das principais doutrinas sobre o
assunto, desde Platão e Aristóteles até os mais celebrados autores contemporâneos.
Tal atitude revela o desconhecimento da “verdade das verdades da ciência”,
que consiste na natureza infindável desta, na provisoriedade daquilo que se
sabe, até o ponto de Karl Popper poder asseverar que o científico é sempre
refutável, o que não significa que não haja juízos evidentes ou
essencialmente valiosos.
É que, nem bem se atinge o que supomos seja “a verdade”, surgem
novos problemas, impensadas indagações que reclamam a continuidade da
pesquisa, novos estudos e experiências.
Se assim é nos domínios das ciências em geral, desde a mais abstrata
afirmação da Matemática até a mais concreta e elementar conquista de ordem
prática, que dizer dos conhecimentos vinculados com a existência mesma do ser
humano, a seu “poder-destino” de saber e comunicar?
É o que parece ocorrer desde o surgimento do homem sobre a face da
Terra, desde que ele transformou o multisecular e animalesco grito
selvagem na fala, na palavra com que expressava suas infinitas intenções,
suas necessidades existenciais, do inesgotável mundo dos utensílios até seus
grifos artísticos nas cavernas primitivas.
É por tais razões que, em minhas últimas indagações filosóficas,
tenho me referido ao “a priori cultural”, como condição primeira do
conhecimento, não me contentando com a dominante afirmação de que o ser
humano é “um ser histórico”: antes de ser histórico, é um ser
cultural, quando este começa a adquirir consciência de si mesmo, e a
palavra se converte em signo da linguagem, fruto mnemônico primordial
que se confunde com a ciência mesma.
Nessa ordem de idéias, é natural que nunca nos satisfaça a última visão
da justiça, a que não mais corresponde aos horizontes e às exigências de uma
época que não se está mais vivendo.
Se a justiça, como escrevi em 1953, ao redigir a última página de meu
curso de Filosofia do Direito”, é “a constante coordenação
racional das relações intersubjetivas, para que cada homem possa realizar,
livremente seus valores potenciais visando a atingir a plenitude de seu ser
pessoal, em sintonia com o da coletividade”, a conclusão implícita dessa
antiga afirmação é a de que “cada tempo histórico tem o seu conceito de
justiça”.
Isso não quer dizer que a nossa noção de justiça surja de repente,
lançando raízes tão somente nos derradeiros acontecimentos históricos, pois
jamais nos livramos de nosso passado, no qual já se achava em germe o nosso
presente, muito embora condicionado por aquilo que “ex novo” se lhe
acrescentou de maneira imprevisível.
No fundo, a história da justiça é a história de nossas carências,
daquilo que falta ao indivíduo e à coletividade para que ambos se realizem na
plenitude de seus valores éticos e existenciais. No âmago da idéia de justiça
há sempre um sentimento de carência, tudo dependendo de ter-se ou não ciência
dela.
Não é de hoje, por exemplo, que a humanidade se divide tragicamente
entre uma minoria que tudo tem, sem necessidade de distinguir entre o necessário
e o dispensável, e uma maioria que chega a sofrer sede e fome. Foi somente na
época contemporânea que se passou a ter consciência universal dessa
aterradora situação, podendo-se dizer que somente então começou a se contar “o
tempo da justiça existencial”.
Esse tempo somente será efetivamente vivido quando reinar a “caridade
existencial”, a que me referi em meu último artigo “Variações
sobre a caridade”, de 20 de novembro último, neste mesmo jornal, quando,
em suma, os donos da Economia e das Finanças inserirem em seus orçamentos de
despesas o “quantum” indispensável a que não existam mais sede e fome em
nosso mísero planeta.
04/12/2004