VARIAÇÕES  SOBRE  A  FÉ

MIGUEL REALE

 

                   O que caracteriza o pensamento filosófico da Idade Média, que termina com o advento do Humanismo e do Renascimento nos séculos 14 e 15, é a convicção de que a mente humana é capaz de resolver, graças à razão, os problemas que superam os limites da experiência.

                   Já no Mundo Moderno prevalece a idéia, que veio cada vez mais se consolidando desde Bacon a Kant e os pensadores contemporâneos, de que a razão humana não tem capacidade para indagar de questões situadas no plano meta-empírico, como, por exemplo, a existência ou não de Deus, a imortalidade da alma, ou seu destino ultraterreno.

                   Tais indagações se situariam no domínio da fé, ou seja, da crença religiosa. Donde o divórcio entre a razão e a ciência, contra o qual ainda recentemente o papa João Paulo II lançou a encíclica Fides et Ratio reafirmando a harmonia que deve existir entre as verdades eternas e a perquirição racional.

                   É claro que não é só no seio da Igreja católica que continua a ser aceita por muitos a prova racional dos problemas transcendentes, com base nos ensinamentos dos mestres medievais, como Santo Tomás de Aquino, bem como também em virtude de novos argumentos, como se dá com Rosmini, Maritain ou Blondel.

                   Nesse sentido, aliás, a chamada “Filosofia Portuguesa”, com pensadores como Leonardo Coimbra, José Marinho e Antonio Braz Teixeira, não concorda com as conclusões do criticismo quanto aos limites negativos da razão, reduzindo-a ao plano experimental. Entendem esses pensadores que indagar, por exemplo, da imortalidade da alma não significa descambar para o irracional, mas sim desenvolver o raciocínio racional até suas últimas conseqüências.

                   No presente artigo não vou tratar desse e de outros problemas análogos, nem sequer em termos de razoabilidade, mas observar que a fé, mesmo quando negada pelos cultores das ciências naturais e da matemática como tais, não raro é admitida por muitos deles como matéria de ordem religiosa, fazendo assim abstração das conclusões do criticismo que caracteriza o pensamento moderno, positivo e agnóstico.

                   A esta altura situa-se o famoso pari (aposta) de Pascal, segundo o qual, reconhecidas as limitações e a miséria do ser humano no plano do conhecimento, é necessário apostar se Deus existe ou não, ou se a alma é ou não mortal. Se, após a morte, tais questões forem respondidas de uma forma ou de outra, “se você ganhar, ganharás tudo; se perder, não perderás nada”.

                   O certo é que para grande número de pensadores a fé supera os ditames da razão, sendo ela, no dizer de São Paulo, “a substância das coisas esperadas e argumento das não aparentes”, entendendo-se por argumento não a mera opinião, mas a firme adesão do intelecto ao que se crê.

                   Isto posto, cabe perguntar como é que se tem ou não se tem fé. Para alguns filósofos, a fé seria “o que resta”, uma vez perdidas todas as esperanças de uma solução a partir da experiência; para outros, seria um dom, uma dádiva divina e a confiança na palavra revelada; para outros, entre os quais me situo, ela pertenceria ao domínio, não do racional, mas do razoável ou plausível, isto é, como conjetura necessária e inevitável.

                   A fé, em todas essas posições, é um ato existencial, dependente do tipo de ser humano que se é, e, notadamente, da idade que se tem. Quando se é jovem, a tendência é o apego ao horizonte da experiência, com repulsa dos temas transcendentes, prevalecendo o sentido da vida em sua imanência.

                   À medida que o tempo passa, vai-se atenuando essa preferência pelo agnosticismo, esse desafio a tudo que seja inexplicável pela razão, como se o peso das dúvidas acumuladas tivesse o condão de se optar pelo inefável, pelo que se oculta nas sombras do mistério.

                   Essa ligação que faço entre a fé e a idade das pessoas tem exemplo magnífico na existência de um dos mais lúcidos pensadores de nosso tempo, empenhado em resolver problemas éticos, políticos e jurídicos. Refiro-me a Norberto Bobbio que, tempos atrás, baseado tão somente nas conquistas das ciências positivas, afirmou crer que, após a morte sobrevem “il buio”, a escuridão.

                   Já agora, poucos anos antes de morrer, segundo nos relata um de seus discípulos, o professor Mário Losano, da Universidade de Milão, em conferência na Faculdade de Direito do Recife, Norberto Bobbio, que era judeu, teria deixado uma mensagem na qual é dito: “Creio que não me distanciei nunca da religião dos pais, mas da Igreja sim. Dela me distanciei já há tempo excessivo, para agora voltar, meio furtivamente, na última hora. Não me considero nem ateu nem agnóstico. Como homem de razão e não de fé, compreendo estar mergulhado no mistério que a razão não consegue penetrar em profundidade, e as várias religiões interpretam de vários modos.”

                   Quanto à falta de religiosidade, poder-se-ia dizer que a fé tem muitas faces, constituindo uma graça, na plenitude do sentido desta palavra. Significa, ao mesmo tempo, dom sobrenatural, encanto e elegância do espírito. Quem tem fé, sente-se consciente de si mesmo, graciosamente integrado na cultura de seu povo, que, no caso do Brasil, é a “cultura cristã” que abriga várias religiões e crenças.

                   Cada vez mais me convenço de que quem tem fé não tem temor da morte, configurando-se esta como um momento, embora final, da vida terrena, uma passagem para uma misteriosa forma de viver, sem corporeidade, que a razão não explica.

                   A fé, em suma, é uma condição de vida que nos auxilia a viver, de tal modo que se componha na existência uma crença intuitiva, um saber transcendental não fundado na razão, mas com ela compatível, e, como tal, plausível. É a suprema conjetura que nos traz a paz de espírito, a maior felicidade que se pode almejar.

24.04.2004