VARIAÇÕES SOBRE A CORDIALIDADE

 

MIGUEL REALE

 

                        A semana passada, reuniram-se intelectuais gaúchos para discutir o significado do conceito de “homem cordial” empregado por Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre para caracterizar a gente brasileira. Ignoro o que foi discutido no Sul, mas o assunto é sempre empolgante e atual, não podendo deixar de provocar meu interesse.

                        Também estrangeiros ilustres tem-nos atribuído essa qualidade, desde o pranteado Otto Maria Carpeau até Luigi Bagolini, que esteve no Brasil diversas vezes, a convite da Faculdade de Direito da USP. Considerava ele o brasileiro “un popolo gentile”. Este adjetivo tem na Itália um sentido especial, usando-se o plural gentili para designar a elite dos amáveis, corteses, nobres.

                        A cordialidade é um vocábulo rico de sentidos, dando-se supremacia às virtudes afetivas e emocionais sobre as racionais e positivas. É claro que o primeiro significado que se lhe atribui é o da amabilidade e cortesia, como tendência natural a resolver os problemas e conflitos graças ao mútuo entendimento.

                        Buarque de Holanda, no seu belo livro fundamental, Raízes do Brasil, uma das interpretações básicas de nossa experiência histórico-cultural, soube jogar com a idéia de “homem cordial” com grande genialidade, mostrando que a cordialidade, tais sejam as circunstâncias, pode ser fonte de êxitos, de contradições e de males.  Alguns críticos superficiais falaram em paradoxo, quando, na realidade, a apreciação objetiva e serena por ele feita é o resultado da aplicação inteligente de um valor poliédrico na apreciação dos atos humanos.

                        Já Gilberto Freyre se vale do conceito em apreço para legitimar uma de suas teses sociológicas mais relevantes, com base na afirmação de que o sistema de Casa Grande e Senzala chegaria a constituir um modelo de organização institucional original, tal a “cordialidade” que amenizava as relações entre senhores e escravos em nosso regime servil, o qual não teria sido tão duro como nos Estados Unidos da América, o que explicaria a melhor recepção do negro no Brasil.

                        A mim me parece que não se pode negar o primado da emoção sobre a razão no homem brasileiro, o que explicaria nossa propensão mais para o mundo das artes e das letras do que para o das ciências positivas, o que, de certa maneira explicaria nosso atraso nas atividades econômicas e científicas. Parafraseando Max Weber, diríamos que, se foi o amor pela riqueza que auxiliou o advento do capitalismo entre os povos puritanos, em nossa terra, o “amor à pobreza” de fonte católica, sobretudo em Portugal, aliado ao sentimento de cordialidade, teria sido uma das causas de nosso pequeno apego aos benefícios da livre concorrência...

                        Qualquer significado que se dê à díade do “homem cordial”, penso que devemos, hoje em dia, proceder a uma revisão do tema.

                        Será mesmo que ainda hoje o brasileiro é tocado, primordialmente, pelo sentido da cordialidade em sua acepção ética e nobre?

                        Infelizmente, não me parece que assim seja, tal a onda de violência que prevalece em todos os domínios de nossa vida coletiva.

                        As estatísticas estão ai comprovando que figuramos entre as nações com maior número de homicídios e de mortes por armas de fogo.

                        Nada me entristece mais do que a notícia diária sobre chacinas, realizadas a sangue frio, com sacrifício, o mais das vezes, de jovens de 15 a 25 anos, quando as vítimas não são crianças.

                        O pior é que reina a impunidade, especialmente nas míseras favelas que se desenvolvem assustadoramente em torno de poderosas metrópoles, limitando-se a polícia a informar o registro do fato infame.

                        Por outro lado, nem se poderá dizer que tudo é produto da miséria, pois os últimos crimes mais hediondos têm sido praticados no seio de famílias mais abonadas. Mata-se pelos mais fúteis motivos, sendo fácil arranjar cúmplices e asseclas, jovens que se dispõem a praticar o crime, não por amizade, mas por simples camaradagem.

                        As causas são conhecidas, a começar pelas drogas e pelo álcool, por este mais do que por aquelas. Mas, no fundo, o que há é uma crise moral que apavora. A bem ver, estamos perante uma crise ética que abrange todos os setores da sociedade.

                        Tudo colabora para a crescente imoralidade, devendo ser posto em primeiro plano a televisão, com seus programas obscenos e violentos, sem que as autoridades tomem qualquer providência. E trata-se de atos de empresas concessionárias, cujos contratos inocuamente estabelecem cláusulas proibitivas de tais abusos.

                        Como explicar a mudança operada na formação espiritual da gente brasileira? A responsabilidade do Poder Público é manifesta, mas não há a quem e a que apelar, continuando cinicamente os órgãos oficiais a proclamar as suas devidas providências.

                        Dir-se-á que essa é também conseqüência da globalização que universaliza hábitos e costumes, dominando não apenas no campo econômico-financeiro, mas também no plano da linguagem e da cultura, alterando as tendências e inclinações próprias de cada povo.

                        Em última analise, a globalização atinge a soberania nacional, que não é mero ente jurídico, pois abrange a independência e peculiaridades culturais de cada nação, que cabe ao Estado preservar, sem perda do ideal kantiano da paz universal, expressão mais alta da cordialidade.

 

30.07.2005