VARIAÇÕES  SOBRE  A  CARIDADE

MIGUEL REALE

                  Dentre as três virtudes teologais, fé, esperança e caridade, é esta a menos objeto de estudo sob o ponto de vista ético, devido à  essencial correlação do fato social com problemas de ordem religiosa, desde a crença em Deus à subordinação do ser humano a desígnios divinos.

                  A caridade representa, em primeiro lugar, a prática de atos de solidariedade em consonância com um valor supremo, ao qual devemos nos sujeitar, procurando sempre regular nosso comportamento com um plano transcendente, a que não teríamos acesso graças tão somente aos poderes da razão.

                  Se, no entanto, analisarmos a estrutura e o sentido da sociedade contemporânea, verificamos que ela envolve e reclama cada vez mais atos de benevolência ditados para todos os membros da coletividade, muito embora não sejam crentes em Deus, e até mesmo sejam avessos a qualquer organização de natureza religiosa.

                  Na realidade, vivemos em um mundo caracterizado cada vez mais pelo tormento de uma fratura entre uma minoria que tudo tem e tudo pode, para a qual não há diferença entre o necessário e o supérfluo, e uma gigantesca massa de excluídos de qualquer bem da civilização sobrevivendo, não se sabe bem como, em extrema pobreza.

                  Esse é o grande problema de nossa época, assinalando a crise maior até agora afrontada pelo capitalismo desde o seu aparecimento sobre a face da Terra, não como um imperativo ideológico, mas como uma realidade social e histórica até agora inamovível.

                  O século passado, dando continuidade a idéias e ideais surgidos no anterior, e que culminaram no movimento marxista, com as mais variadas diretrizes, foi teatro de uma série de investidas anticapitalistas, apelando para a luta de classes como o instrumento capaz de instaurar um mínimo de igualdade no mundo no que se refere às exigências vitais dos indivíduos e dos povos.

                  Muito embora se pretendesse fundar tais reivindicações em razões científicas – e o “socialismo científico” parecia ser a maior conquista alcançada pela humanidade em sua terrena trajetória – os conhecimento, marcados por duas guerras universais e os mais sangrentos genocídios, revelaram o que havia de utópico nos planos políticos em conflito.

                  A derrocada da União Soviética, após a derrubada do Muro de Berlim, assinalou o fim do socialismo real, até o ponto de ingenuamente ter-se pretendido falar em “fim da história”  sob a égide do neo-capitalismo, uma utopia substituída por outra, a segunda ilusória e decepcionante. A meu ver, nada justifica a teoria segundo a qual a exclusão social somente poderá ser superada pelas próprias “leis do mercado” baseadas na livre concorrência, com a participação mínima do Estado.

                  Mesmo que o chamado neocapitalismo pudesse, por seus próprios meios, alcançar esse surpreendente resultado, é óbvio que seriam necessários muitos anos, perdurando a fome que não espera, na maior parte do mundo, não só na África, onde o fenômeno da miséria generalizada é endêmico, mas também nas maiores metrópoles com suas favelas periféricas e os cortiços que invadem os centros urbanos das mais progressistas cidades.

                  Daí a necessidade de repensar-se o conceito de caridade, dando-lhe um novo sentido, para indicar o imperativo social de medidas urgentes e inadiáveis, sobretudo à luz das estatísticas que demonstram que reduzida porcentagem dos recursos disponíveis em poder de pessoas e nações abastadas bastaria pelo menos para minorar a miséria que prevalece no planeta.

                  Dir-se-á que estou  confundindo caridade com solidariedade, mas esta facilmente existe entre os mais fortes e poderosos, visando atingir mais amplos espaços de mando. A caridade, ao contrário, pressupõe a desigualdade entre os participantes, razão de ser das carências objeto dos atos de auxílio e compaixão. Em nenhuma virtude é tão viva e ardente a alteridade, a presença do outro, dos hiposuficientes carecedores de alimento e moradia.

                  Não se confunda, porém, a caridade com a inclinação de dar uma esmola aos necessitados, como forma de acariciar nossos supostos sentimentos de bondade, porque a caridade verdadeira afunda suas raízes na justiça social, como um imperativo intersubjetivo que obriga  objetivamente todos a colaborar, tanto os indivíduos como as empresas e as organizações civis privadas, as ONGs, sobretudo os Estados, cuja contribuição é decisiva, exigindo entidades internacionais constituídas para esse fim supremo.

                  Eu não poderia aqui elencar todas as providências políticas, econômicas e financeiras reclamadas com urgência pela caridade social, mas me parece inegável e justo que uma parte delas deve consistir na cobrança de tributos que incidam sobre os mais abastados.

                  Já estou esperando a grita levantada toda vez que se fala em impostos sobre a riqueza, sobretudo em um País que, anos a fio, mantém intocável a tabela progressiva do imposto de renda na fonte, não obstante a longa inflação que pesa sobre a classe média e os trabalhadores.

                  Procuremos ir além e nos congregarmos todos, não para a caritas eventual e insignificante, mas para uma obra universal  que realize, no mais breve tempo possível, a justiça social, sem a qual a democracia é uma forma postiça de igualdade. Muito embora pareça utópico, essa é a única via capaz de superar a crise atual do capitalismo, mais ética do que econômica.          

20/11/2004