UNIVERSIDADE  ESFACELADA

MIGUEL REALE

                   Os que analisam com isenção a política do presidente Luiz Ignácio Lula da Silva têm observado que ela obedece a duas diretrizes complementares, das quais resultam as demais. Uma consiste na permanente redução da nação ao Partido dos Trabalhadores, como se seus interesses fossem sempre coincidentes; e a outra decorre da persistente opção por soluções de caráter estatizante, em prejuízo dos valores democráticos.

                  Era natural que, nessa linha de orientação, chegasse a vez do problema universitário, de conformidade com o Projeto de Lei concebido pelo Ministério da Educação que tem recebido unânime repulsa de quantos integram os quadros do ensino superior, ou tenham consciência de sua real missão no seio da sociedade.

                  Conforme tem sido por todos reconhecido, o vício persistente de estatização partidária compromete esse programa governamental, até o ponto de violentar preceitos constitucionais que asseguram às universidades plena autonomia, tanto no que se refere à sua estrutura e organização quanto aos seus objetivos e fins.

                  Se o Congresso Nacional viesse a acolher proposta tão infeliz e desastrada, seriam irreparáveis os danos causados ao País, sendo esfaceladas

 

as instituições universitárias que são, ao mesmo tempo, as bases e o resultado mais alto da cultura de um povo.

                  Como o proclamam os idealizadores de tal monstrengo legislativo, visariam eles dar um “banho de socialidade” aos institutos universitários, subordinando-os a órgãos externos emanados e constituídos por entidades sociais do mais amplo espectro, mas que nada têm a ver com as finalidades e os destinos do ensino superior, atingindo-o mortalmente em suas raízes.

                  Tudo resulta, por conseguinte, de uma subversão total da natureza própria das universidades, que representam o resultado de um processo multisecular de seleção de valores intelectuais que se confunde com a civilização mesma de um povo.

                  Basta um conhecimento superficial da história das universidades, desde quando elas surgiram na Idade Média, dando novo sentido ao legado da cultura greco-romana, para saber-se que quem diz universidade diz seleção comunitária do saber realizada por especialistas em todos os ramos da ciência, com base em processos de investigação e de pesquisa dotados de metodologia própria.

                  É claro que entre universidade  e  sociedade há uma vinculação essencial, mas esta não resulta da arbitrária e indevida interferência  de organizações externas, mas sim de uma vivência própria, à medida que na

 

coletividade vão surgindo problemas resultantes das mutações operadas no desenvolvimento tanto da vida comum  (Lebenswelt) como no progresso dos estudos sobre a realidade material e espiritual.

                  Como se vê, somente uma visão ingênua e ignara, como tal perniciosa, pensa em sujeitar as universidades a aspirações e diretrizes de organismos externos de natureza sindical, corporativa ou religiosa, sem perceber que elas já se acham por inteiro no seio da coletividade, recebendo, dela o que há de essencial e mais significativo, mas através de meios e processos seletivos de conhecimento e valoração que somente a ciência proporciona.

                  É deveras lamentável que um governo, que se diz popular, ignore a origem e o destino  das universidades, privando-as de seu bem por excelência que é o poder-dever de atuar com autonomia, de conformidade com o disposto no Art. 207 da Constituição Federal, segundo o qual “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissocialidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

                    Nesse sentido, cabe dar saliência a duas observações. A primeira é a de que a autonomia deve ser sempre preservada, quer o Estado chame a si a organização e a direção das universidades, quer estas caibam a pessoas jurídicas privadas, caso em que serão estabelecidas as disposições legais necessárias para que seu exercício se dê em benefício da coletividade, a partir da Lei complementar de diretrizes e bases da educação nacional. Não pode, em suma, uma universidade privada ser tratada como ‘longa manus” do poder estatal, devendo ser assegurada a liberdade de sua organização e decisão, obedecidas as normas gerais do que podemos denominar “convívio universitário”.

                  Por outro lado, deve-se dar a maior importância à extensão, a que se refere o citado Art. 207, o que significa que uma verdadeira universidade não deve se limitar a ministrar ensino, mas também a prestar serviços à comunidade, por todos os meios a seu alcance.

                  Essa diretriz é fundamental sobretudo nos países em desenvolvimento. Se nas nações de primeira linha são as próprias empresas privadas que realizam as pesquisas técnico-científicas, exigidas pela sociedade, visando elas auferir os respectivos resultados econômicos, nas nações menos poderosas, tal função cabe sobretudo às universidades, cujo progresso não pode ser embaraçado por pretensas e desastradas “revoluções sociais”, como a que a atual administração federal em má hora pretende promover.

26/02/2005