PERSPECTIVA  E  TEORIA  DO  SER

MIGUEL REALE

 

                   Segundo Martin Heidegger, por influência de Aristóteles e dos pensadores medievais, os filósofos têm cultivado tão somente a “teoria dos entes” (Metafísica) e não a “teoria do ser” (Ontologia).         Daí a sua idéia de basear esta no Dasein, palavra de múltiplos significados, aceita tanto por Heidegger como por Karl Jaspers, embora com diferente sentido.

                   Para o autor de Ser e Tempo, obra que revolucionou a Filosofia no século passado, o Dasein designaria o ser humano enquanto está no mundo, ou seja, o ser inter homines, relacionado e comunicativo, o que levou os filósofos italianos a designar o Dasein com o vocábulo esserci.

                   É preciso salientar, como nota Ferrater Mora, que o Dasein se restringe ao homem, ou melhor, ao ser humano, do qual se pode dizer que é meu ou que sou eu mesmo. Esse é o ponto de partida do filosofar heideggeriano, no qual ser e tempo se correlacionam em uma díade incindível.

                               Para o mestre da Filosofia Existencial (e não “existencialista” à maneira de J. P. Sartre) o Dasein radica na Existenz, porque não pode fazer senão existir, sendo a linguagem, meio de comunicação por excelência, a morada do ser.

                   A respeito da linguagem, lembro que, em artigos anteriores nesta mesma página, observei que, na noite dos tempos, o homo erectus surgiu para o mundo da cultura ao evoluir do grito animalesco para a fala, prerrogativa somente do homem, o que me levou à conclusão de que há um a-priori cultural, que antecede à história, em complemento ao a-priori gneseológico-formal de Emanuel Kant e ao a-priori material de Edmund Husserl.

                   Sob esse prisma a cultura é a forma primordial da temporalidade, afirmando-se como linguagem, a morada do ser. Não creio, porém, que o Dasein tenha sido projetado no mundo, como pretende Heidegger, sendo antes o resultado de um multimilenar  processo evolutivo, que só conjeturalmente nos é dado conhecer.

                   O ser humano é um ser cultural antes de ser um ser histórico, visto como a história assinala a autoconsciência do processo cultural, pressupondo a capacidade de selecionar valores, a fim de se determinar o que deve ser reconhecido como um bem a ser preservado na memória coletiva.

                   Dessarte, a Antropologia deixa de ser uma das mais relevantes ciências humanas, para ser também uma ciência filosófica, tal como, de resto, já se revela nas obras pioneiras de Lévi-Strauss. Ela, a bem ver, não só torna conhecidas as atividades e obras do homem primitivo, porque, com essa revelação, nos mostra as raízes da existência humana.

                   Após os estudos de Oswald Spengler, Pitirim Sorokin, R.G. Collingood,  Arnold Toynbee, Pierre Teillard de Chardin  e Fernand Braudel, não há necessidade de demonstrar que o processo histórico-cultural se desenvolve em múltiplas mundivivências que se denominam civilizações, tanto vertical como horizontalmente. Na realidade são “constelações axiológicas” que demonstram a infinitude do poder nomotético e criador do espírito humano.

                   Suas criações são infinitas, mas podemos admitir, com Sorokin, que: a) é reduzido o número das civilizações; b) existem diferenças essenciais entre os vários tipos básicos ou protótipos de civilizações; c) a fundamentação de cada um deles em certos pressupostos filosóficos ou valores últimos; d) a conexão de cada sistema com a realidade empírica formando uma unidade causal significativa; e) o encontro de certas características gerais em todos os supersistemas ou civilizações.

                   Ora, o encontro em todas as civilizações de certas características comuns demonstra que, não obstante haver grandes diferenças entre elas, há também determinados valores constantes universais que resistem às mutações históricas: são as que denomino invariantes axiológicas.

                   Se assim é, se da análise dos valores singulares podemos atingir as invariantes axiológicas, também podemos dizer que do estudo dos entes, em geral, é possível atingir o sentido último do Ser, não como uma verdade racional comprovada, como pretendia a Metafísica clássica, mas como conjetura, ou seja, como uma conclusão razoável. A diferença entre “racionalidade” e “razoabilidade” é que distingue a ciência, baseada na experiência, da ciência conjetural que dela só resulta obliquamente.

                   Como penso ter demonstrado em meu livro Verdade e Conjetura, a Metafísica somente pode ser compreendida como ciência conjetural, isto é, “como se” (als ob) se originasse da experiência.

                   Essa visão virtual do ser depende, em suma, da perspectiva segundo a qual é ele observado, não se podendo, porém, afirmar, como o fez Heidegger, que, desse modo, não se chega a uma “teoria do ser” (Ontologia), mas a uma “teoria dos entes” (Metafísica). Esta distinção não tem razão de ser, pois, em última análise, o Dasein, a partir do qual ele pretende fundar a Ontologia – não é senão a compreensão do ser de conformidade com uma perspectiva, a de estar ele no mundo.

                   Se, como diz Kant, o que se sabe depende do “eu que pensa” – a tal ponto que o sujeito cognoscente seria o legislador da natureza – podemos com mais razão concluir que, às vezes, o que se sabe depende da perspectiva ou ponto de vista do eu que pensa.

                   Perspectiva e conjetura são termos inseparáveis, pois o que considero “razoável” o é sempre segundo dada perspectiva, sendo certo que, na Epistemologia contemporânea, se tem admitido que certos problemas da ciência positiva somente podem ser objeto de conjetura.

                   Na Lógica paraconsistente – da qual Newton Afonso da Costa é um dos fundadores – distingue-se a “verdade” da “quase verdade”, parecendo-me que essa distinção corresponde a que faço entre a verdade racionalmente verificada e a que resulta de conjeturas.

                   Pois bem, a teoria do ser ou Ontologia me parece mais razoavelmente fundamentada em função das infinitas “perspectivas do ser”, do que à luz somente do cambiante conceito de Dasein que depende da perspectiva assumida pela Filosofia Existencial.

                   O perspectivismo, em suma, vem  abrir novos caminhos à “teoria do ser”, compreendida, a meu ver, como “teoria conjetural do ser”, objeto da Metafísica ou Ontologia, que são termos sinônimos, o que é contestado, como vimos, por Heidegger e seus continuadores.

                   O processo histórico-cultural não se desenvolve de maneira linear, mas com idas e vindas, ou “corsi e ricorsi”, conforme observado, pela primeira vez, por Giambattista Vico, o que é reconhecido por Gilberto Freyre que nos fala em “surgências e ressurgências”.

                   Ora, esse desenvolvimento multilinear e complexo da história corresponde a variáveis perspectivas, sendo estas conjunturas do tempo. Isto posto, podemos, ou melhor, devemos concluir que o que se diz do ser depende da perspectiva em que se situa o intérprete.

                   Nada de extraordinário, por conseguinte, que a “teoria do ser” seja, necessariamente, “teoria dos entes” que surgem e ressurgem ao longo do processo das civilizações, caracterizadas por suas distintas perspectivas.

 

                                      3.I.2004