SOCIALISMO À BRASILEIRA, COM CORRUPÇÃO

 

MIGUEL REALE

 

                        A esta altura dos acontecimentos determinados pelo Partido dos Trabalhadores, temos elementos bastantes para a apuração da verdade, transcendendo o plano dos meros indícios.

                        A verdade é demonstrada geralmente por três teorias, a da correspondência, a da coerência e a da pragmática. No seu Novo Dicionário de Lógica, Leonidas Hegenberg e Marilúze Ferreira de Andrade e Silva assim as definem: “(1) a teoria da correspondência afirma que uma proposição (ou um significado) é verdadeira (o) se existe algum fato ao qual corresponda; em outras palavras, uma proposição é verdadeira se expressa o que efetivamente ocorre (a correspondência em tela fica implícita, em geral, como se fosse fácil de perceber ou compreender); (2) a teoria da coerência afirma que “verdade” seria atributo de sistemas. Uma proposição é verdadeira, por esse prisma, quando elemento necessário de um “todo” sistemático e coerente; (3) enfim, a teoria pragmática afirma que uma proposição é verdadeira na medida em que “funcione”ou “se revele satisfatória”. Note-se que esse “funcionar” (“revelar-se satisfatória) fica, em geral, estabelecido de muitos modos, de acordo com as preferências pessoais dos defensores da teoria.”

                        Pois bem, os fatos ocorridos desde as surpreendentes revelações do deputado Roberto Jefferson, quando se desentendeu com seus pares, não são senão a confirmação de um fato fundamental e verdadeiro, sob os três pontos de vista supra expostos: a transformação do PT em um partido único cujo plano consistia em realizar um gigantesco desvio de verbas para, mediante elas, se apossar da máquina administrativa do Estado, graças ao pagamento de vultosas contribuições dadas a dezenas de parlamentares, e seus associados. Já se elevaram a dezoito o nome dos deputados que já tiveram suas responsabilidades comprovadas para base de cassação de mandato.

                        Felizmente, Jefferson fez seu clamoroso pronunciamento, sem o qual a nação teria sido exposta a não perceber a trama existente até as eleições do próximo ano.

                        Não há mais dúvida sobre a relação entre o empresário Marcos Valério e o Tesoureiro do PT, Delúbio Soares, em impressionante correspondência com as épocas em que se tornaram necessárias as operações programadas, havendo conformidade perfeita entre os atos praticados e as contribuições pagas, impropriamente denominadas mensalão, pois não faz diferença que um deputado receba pagamentos ilícitos de mês a mês ou de uma só vez.

                        Além de atender a essa correspondência, as quantias recebidas pelos deputados  vinham satisfazer a seus fins visados, quer fosse a título de pagamento de campanha eleitoral, quer como retribuição personalíssima. Existe, ademais, um perfeito atendimento dos fins pragmáticos, com admirável coerência com a estrutura montada, tendo como base a correlação entre o empresário Marcos Valério e o tesoureiro Delúbio Soares, ambos agindo, supostamente, como longa manus do Ministro Chefe da Casa Civil, deputado licenciado.

                        Os dados até agora obtidos já demonstram a proporcionalidade existente entre o valor dos saques feitos pelos parlamentares, à revelia da lei e dos bons costumes, e o destino de seus atos, em uma coerência que teria sido extraordinariamente vantajosa se realizados para fins lícitos ou em benefício do bem comum.

                        Estando, desse modo, comprovada a verdade da corrupção, convertida em fundamento de uma original socialização de bens públicos, tudo sempre às ocultas da fiscalização da Justiça Eleitoral, não há que vacilar quanto à apuração das responsabilidades e à severa punição dos culpados.

                        Assim sendo, não há como pensar em acordo ou em medidas cautelares, a fim de ficar demonstrado o caráter benigno de nossa experiência democrática.

                        A democracia não é absolutamente incompatível com o rigor das penas aplicáveis aos que ferem os princípios básicos do Estado de Direito. Ao contrário, exatamente pelo espaço de liberdade que consentem, devem os democratas verdadeiros ser implacáveis no que se refere à aplicação da lei cabível em cada caso.

                        O essencial é que haja plena correlação entre o que é proclamado e os fatos aprovados, como se dá com a existência de um banco dotado de relacionamento e competência especiais com a tesouraria de um partido político, atendendo prontamente aos saques solicitados pelos parlamentares. Tudo indica a ocorrência de comportamentos efetivos no quadro coerente de uma estrutura pré-estabelecida.

                        Não se diga que estou sendo complacente quando admito a hipótese da não participação do presidente da República, pois, salvo seja, não me parece que até agora tenha sido encontrado indício veemente dessa interferência. Prefiro admitir antes uma omissão resultante de quem demonstrou pouca vocação para o exercício da função administrativa. Resultante condenável e sinal de manifesta incompetência por parte de quem se acha no mais alto cargo da República, mas que não implicou, até agora, na realização de atos que justifiquem a decretação de seu impedimento, tal como previsto na Constituição.

                        O que houve foi a desilusão dos intelectuais marxistas da USP que sonharam com um PT organizado e atuante como um partido socialista de cunho ético, o que, porém, não lhes dá o direito de proclamarem, como fez a filósofa Marilena Chauí, que “o verdadeiro engajamento exige muitas vezes que fiquem em silêncio”...

                        A verdade, ao contrário, exige o reconhecimento dos que erraram ou traíram a própria causa, concordando com a sua punição exemplar. Fora disso, o que há é apenas omissão e complacência ominosas.

                        Admito, mesmo após o naufrágio do “socialismo real”, com o fracasso da URSS, que se aspire por um socialismo eqüitativo e ético, mas, quando a corrupção passa a ser a razão de ser de seu dinamismo, só nos resta aplicar as penas que a Constituição e as leis ordinárias determinam.

                        É o que a nação espera, nesta que é a maior crise moral e política da história da República, não se podendo admitir que o Poder Judiciário possa interferir na competência privativa do Legislativo na alta missão que lhe confere a Constituição.

                        24.09.05