O  PAPA  FILÓSOFO

MIGUEL REALE

 

                  Muito se escreveu sobre os inexcedíveis méritos de João Paulo II, mas não é possível silenciar sobre sua formação filosófica, sem a qual não se penetra na essência de suas Encíclicas, especialmente uma das últimas, Fides et Ratio, sobre a razão e a fé.

                  Karol Wojtyla, que foi operário, freqüentou seminários clandestinos, proibidos pelos soviéticos, e neles estudou filosofia e teologia. Foi um dos momentos históricos mais significativos do pensamento no século passado, quando Husserl restabelecia, contra as estratégias do positivismo e do marxismo, os poderes da intuição essencial do ser, instaurados pela filosofia fenomenológica.

                  Foi propriamente a vertente existencial renovadora dos estudos éticos que mais influiu sobre o jovem sacerdote, com a ética material dos valores de Max Scheler e o intuicionismo do grande filósofo polonês, Roman Ingarden, professor titular da Universidade de Cracovia.

                  Superava-se, então, o formalismo ético de Kant, restituindo-se à intuição a capacidade de penetrar nos mais íntimos refolhos da experiência, então reduzida apenas aos fenômenos naturais.

                  A vocação de Wojtyla pela filosofia não foi episódica, marcando

antes  uma  constante   em  sua inteligência, consoante resulta de sua atividade

 acadêmica como professor de ética e teologia na Universidade de Lublin.

                  Se de Max Scheler recebia os ensinamentos sobre a fundamentação axiológica da ética, assumia o personalismo ético de Ingarden, com sua teoria sobre “a experiência do homem, segundo o qual o homem-pessoa é visto através de suas ações, e, por conseguinte, nos limites de sua circunstancialidade finita”, conforme Wojtyla escreve em Persona y Acción, Madrid, 1982, tradução castelhana do texto definitivo estabelecido em colaboração com a fenomenóloga Anna Teresa Tymienieka.

                  É esse interesse por temas filosóficos que explica a idéia que João Paulo II teve, no Rio de Janeiro, de um encontro com intelectuais brasileiros, do qual tive a honra de participar, conforme lembro em pequeno estudo intitulado “O Papa e a Cultura”, inserto no livro Das Letras à Filosofia, publicado em 1998 pela Academia Brasileira de Letras.

                  Seja-me permitido transcrever no presente artigo as  indagações que ousei formular-lhe brevemente, dado o adiantado da hora. A primeira decorria da compreensão da cultura como afirmação e desenvolvimento do valor da pessoa humana, por mim entendida como “valor-fonte de todos os valores”, o que me parecia corresponder, em parte, ao ensinamento papal que acentuava  a necessidade de um encontro entre a Igreja e a cultura em razão do homem, apresentado como “ser-no-mundo” sujeito de desenvolvimento, para uma e para outra, mediante a palavra e a graça de Deus, o que subordinava a filosofia à teologia.

                  Isto posto, indagava eu da relação entre Cristianismo e “cultura”,  uma vez que esta, enquanto realização histórica de valores humanos, não pode deixar de ser relativa e contingente, ao passo que os valores cristãos são  apresentados como eternos e absolutos, expressão da divindade de Cristo.

                  Em seguida, realcei o alto significado do discurso ouvido, no tocante à pluralidade das culturas, “unificadas”, dissera o Pontífice, “pelo respeito mútuo, pelo reconhecimento das peculiaridades culturais, pelo diálogo que enriquece a uns com os valores e as experiências dos outros”. Só podia enaltecer esse entendimento exigido pelo mundo atual, caracterizado pela diversidade e complementaridade de imensas áreas culturais, mas solicitava mais uma palavra elucidativa sobre o modo de ser de agir dos cristãos, não somente em relação às culturas diferentes da sua, mas perante as declaradamente anticristãs que ocupam tão largo espaço no cenário da civilização contemporânea.

                  Antes de referir-me à manifestação do Papa a propósito das cinco intervenções havidas, lembro que João Paulo II pediu vênia para responder em francês, por parecer-lhe que o seu conhecimento da “rica e bela língua portuguesa” não lhe era ainda bastante para exprimir seu pensamento, ponderando, ainda, que, após um dia de tão fortes emoções, e “àquela hora canônica” a sua vontade natural era a de falar polonês...

                  Com admirável domínio do idioma de Descartes, e com clareza deveras cartesiana, passou ele à análise das questões propostas, esclarecendo e completando o seu discurso. Ao calor daquelas palavras ditas de improviso, todos sentimos a força de um pensamento densa e concretamente vivido por uma das personalidades mais significativas de nosso século. Palavras francas e claras, sem subterfúgios obscuros ou máscaras do hermetismo.

                  No concernente à primeira de minhas indagações, disse-nos João Paulo II que, efetivamente, nenhuma cultura, nenhuma civilização, nem mesmo a cristã, logra realizar em sua plenitude todas as virtualidades do Cristianismo. Também ela é uma tentativa perene de realização dos valores que a transcendem, cabendo-nos, por isso, ter consciência de suas limitações históricas. O fato, porém, de o homem, como ser finito e livre que é, não poder atingir todo o significado escatológico da mensagem de Cristo, não nos impede de procurar viver em consonância com ela, o que somente poderá ser alcançado com dedicação e amor. Há nesse renovado esforço do homem, visando a realizar-se no sentido de Deus (procuro me lembrar das palavras papais com a maior fidelidade possível), um valor infinito, e nada deve impedir que essa tarefa se cumpra.

                  No concernente à segunda questão por mim oferecida, o Sumo Pontífice afirmou que a cultura cristã, em virtude de sua inevitável contingência histórica, não podia permanecer isolada, devendo abrir-se para todas as formas de civilização, sem receio de “diálogo com outras culturas”, pois esse diálogo só poderá ser benéfico a umas e outras, ao serem percebidos os valores que elas têm em comum e os que as distinguem.             09/04/2005