NOTAS  SOBRE  GLOBALIZAÇÃO

MIGUEL REALE

                  O problema da globalização, ainda em processo de desenvolvimento, não comporta tratamento minucioso e global, mas não pode deixar de ser objeto de profundos estudos para se verificar a possibilidade de cautelosa interferência em sua vertiginosa expansão.

                  Em primeiro lugar, deve-se  reconhecer que se trata de fenômeno novo, não tendo razão os que lembram como precedentes os grandes impérios como os de Alexandre Magno, de Roma, de Carlos Magno, de Felipe II, ou da Inglaterra na época colonialista.

                  Alguma semelhança tem a globalização com o Império Romano, não somente pelo geral predomínio generalizado do latim, mas também pela forma como os herdeiros de Cesar tratavam os povos a eles submetidos, respeitando seus usos e costumes, mas lhes incutindo o “espírito de domínio integrante romano”, o que favoreceu a grande influência de seu Direito na sociedade ocidental.

                  Por outro lado, a globalização não resulta do poderio militar e mesmo da hegemonia econômica de dado povo, mas, ao contrário, do progresso das ciências positivas. Foram estas que vieram instaurar uma nova era, caracterizada pela universalização das informações graças aos processos eletrônicos de comunicação, como o demonstra a Internet, processos esses  que não se referem a um rei ou a um País, mas representa uma compressão impessoal de todos para todos, em rápido progresso.

                  Ela atinge todas as formas do pensamento humano, todos os setores da cultura, entendida esta como o conjunto complexo de todas as objetivações do espírito no espaço e no tempo.

                  O primeiro campo por ela atingida foi o econômico, e, mais predominantemente, o mundo financeiro, até o ponto de não haver grandes empresas que sejam apenas nacionais, organizando-se como entidades internacionais em sua estrutura e em seu programa. Basta pensar, por exemplo, na produção de automóveis, cujas peças são feitas em diversas nações, conforme os dados e vantagens dos mercados.

                  O fenômeno a meu ver exemplar da globalização é a União Européia, que chegou à aceitação de uma só moeda, o euro, sendo antes a moeda uma monopolizadora  expressão da soberania nacional. Por sinal que esta perde força em todos os países, até o ponto de haver uma super- constituição continental com organização própria, inclusive quanto ao Poder Legislativo com seu inovador Parlamento, que é  supra-nacional porque formado por representantes de todos os Estados.

                  Daí a conclusão de que, no futuro, não haveria mais Estados Nacionais, mas governos executores das diretrizes e determinações comuns, sendo o Direito de cada nação a elas sujeito.

                  Outra conseqüência do fenômeno que estamos analisando é o aparecimento de uma língua dominante, tendo-se dito com ironia que “o computador fala inglês”, sem tradução dos textos para cada um dos povos.

                  O impacto do inglês sobre idiomas nacionais é um fato cada vez mais dominante, com tão grande força que, no campo das ciências e da técnica, livros e revistas só são editados em inglês, com resumo na língua local.

                  Do ponto de vista econômico, temos as conseqüências piores, estando os mercados nacionais sujeitos a interferências financeiras externas, de difícil localização, que subvertem, de um dia para outro, a livre concorrência, impondo sua vontade anônima incontrolável. É uma forma de novo imperialismo, contra a qual não foram encontradas medidas de controle eficaz, sendo possível dominar uma nação sem ocupar seu território.

                    Mais triste em tudo isso é o perigo do desaparecimento da pluralidade das culturas, obedecendo as artes, e até mesmo a poesia, que é a mais livre e diversificada das atividades espirituais, a modelos uniformizantes e opressivos.

                  Não podemos deixar de fazer especial referência aos usos e costumes, com a generalização de padrões de vestir ou de comer, e sobretudo, através da televisão, do rádio, do teatro e do cinema, do comportamento dos seres humanos, desde a infância à velhice, com predominante e passiva imitação que é uma forma inegável de domínio.

                  Pois bem, não obstante todos os elementos negativos apontados, não é o caso de uma entrega à globalização sem esperança de um mínimo de liberdade e de originalidade.

                  A começar pela situação internacional, não há como esquecer que ela depende da mediação dos Estados nacionais, sempre detentores de certo poder corretivo, imprimindo algo de singular e de próprio nas investidas movidas contra sua gente, como penso ter demonstrado em meu livro Crise do Capitalismo e Crise do Estado, Editora Senac, 2.000.

                  Daí a necessidade de se abandonar de vez a concepção utópica de um Estado mínimo – na qual liberais e marxistas paradoxalmente coincidiram no século passado – para dar-lhe meios jurídico-políticos e financeiros bastantes para preservação  dos valores da cultura nacional, inclusive da própria língua, o que exigirá corajosa reforma da educação, abrangendo todos os graus de ensino, a fim de que a assimilação dos termos técnicos e científicos se verifique respeitando, o mais possível, o sentido tradicional do próprio idioma.

                  Nessa obra de verdadeira salvação nacional cabe prestar a maior atenção e dedicação à tradição, à memória de homens e coisas de nosso grande e valioso passado, pouco importando que, em alguns setores da sociedade, haja acusação de posição retrógrada. Não há como querer um futuro sem qualquer ligação com os valores de nosso passado.

21/05/2005