O  NOVO CÓDIGO  CIVIL  E  SEUS  CRÍTICOS

MIGUEL REALE

                 Aprovado o novo Código Civil pela Câmara dos Deputados, a grande maioria dos juristas responsáveis reconheceu o imenso progresso representado pela substituição do Código de 1916, que, não obstante os seus incontestáveis méritos, não resistiu aos desgastes provocados pelas profundas mutações sociais e tecnológicas desencadeadas pelo tormentoso século passado.

               Nesse sentido, observo que a nova Lei Civil preservou numerosas contribuições valiosas da codificação anterior, só substituindo as disposições que não mais correspondiam aos valores ético-jurídicos da nossa época, operando a necessária passagem de um ordenamento individualista e formalista para outro de cunho socializante e mais aberto à recepção das conquistas da ciência e da jurisprudência.

               Não faltaram, todavia, críticas à aprovação do novo Código, oriundas de três ordens de motivos. A primeira não merece senão breve alusão, porque relativa a jovens bacharéis, jejunos de experiência jurídica, que se aventuraram a formular juízos negativos sobre uma lei fundamental que nem sequer leram ou viram, somente pelo fato de seu projeto originário datar de cerca de trinta anos.

               Compreende-se que as inteligências juvenis, entusiasmadas com as novidades da Internet ou a descoberta do genoma, tenham decretado a velhice precoce do novo Código, por ter sido elaborado antes dessas realizações prodigiosas da ciência e da tecnologia, mas os juristas mais experientes deviam ter tido mais cautela em suas afirmações, levando em conta a natureza específica de uma codificação, a qual não pode abranger as contínuas  inovações sociais, mas tão somente as dotadas de certa maturação e da devida “massa crítica”, ou já tenham sido objeto de lei.

               A experiência jurídica, como tudo que surge e se desenvolve no mundo histórico, está sujeita a imprevistas alterações que exigem desde logo a atenção do legislador, mas não no sistema de um código, mas sim graças a leis especiais, sobretudo quando estão envolvidas tanto questões de direito quanto de ciência médica, de engenharia genética, etc. exigindo medidas prudentes de caráter administrativo, tal como se dá, por exemplo, no caso da fecundação in vitro. Em todos os países desenvolvidos, tais fatos são disciplinados por uma legislação autônoma e específica, inclusive nos Estados Unidos da América e na Inglaterra, nações por sinal desprovidas de Código Civil, salvo o caso singular do Estado da Luisiana na grande república do norte, fiel à tradição do direito francês.

               Como se vê, a atualidade da nova codificação brasileira não pode ser negada com base em realizações científicas supervenientes, que por sua complexidade, extrapolam do campo do direito-civil, envolvendo outros ramos do direito, além, repito, de providências de natureza meta-jurídica. Isto não impede que, ao tratar da presunção dos filhos na constância do casamento, o artigo nº 1.597 se refira também aos “havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido”, e haja referência a filhos “havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga”, e mesmo aos “havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”.

               Por outro lado, o fato da aprovação do Código Civil pelo Congresso Nacional ter demorado  26 anos, não significa que, durante todo esse tempo, não tenham ocorrido incessantes atualizações, tanto na Câmara dos Deputados – onde, cerca de 1.200 emendas foram objeto de magnífico relatório do deputado Ernani Satyro – assim como no Senado Federal, várias alterações devidas a sugestões dos membros remanescentes da originária “Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil”, como se deu comigo, pois continuei a prestar colaboração ao Poder Legislativo. Para dar poucos exemplos, foi minha a idéia de denominar “poder familiar” o antigo “pátrio poder”, assim como, à última hora, propus ao Relator do projeto no Senado, o ilustre professor Josaphat Marinho, por ele sendo aceitas, mudanças que me pareceram indispensáveis em matéria de testamento particular e de sociedade por quotas de responsabilidade limitada.

               Através, em suma, de emendas nas duas Casas do Congresso, com a colaboração de vários juristas ilustres, o Projeto inicial veio incessantemente se completando e aperfeiçoando, tal como se deu com as propostas feitas pelo Ministro José Carlos Moreira Alves, por  Fabio Konder Comparato, Alvaro Villaça Azevedo e Regina Beatriz Tavares, estes dois últimos visando a corrigir graves defeitos da lei que rege a união estável. É absurdo, por conseguinte, proclamar-se a inatualidade do novo Código Civil somente por ter havido tanta demora em sua aprovação final.

               De mais a mais, não vejo porque a Internet implica em alterar o Código Civil, pois os negócios jurídicos concluídos por intermédio dela não deixam de ser negócios jurídicos regidos pelas normas do Código Civil, inclusive no que se refere aos contratos de adesão. A Internet atua apenas como novo meio e instrumento de intercâmbio e acordo de vontades, não interferindo na substância das disposições legais quanto aos direitos e deveres dos contratantes.

               Esclarecido esse ponto, resta examinar uma terceira espécie de argumentos, que, em última análise, é invocada pelos saudosistas do Código de 1916, que deveria, a seu ver, ser objeto de sucessivas reformas parciais, sem necessidade de nova codificação.

               Como supervisor e coordenador dos trabalhos da “Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil”, cabe-me dar testemunho de nosso comum  esforço no sentido de preservar, o mais possível, a legislação vigente, verificando-se a inviabilidade desse propósito, não somente em razão do obsoletismo de muitas de suas disposições, mas também porque, em se tratando de um ordenamento sistemático, a mudança em uma parte logo repercute sobre outros pontos do projeto, não podendo deixar de prevalecer a sua elaboração  “ex novo”.

               Não se tratava, com efeito, de mera mudança de artigos, mas de tomada de posição perante o problema da codificação exigida pelo País, à luz de outros paradígmas de ordem ética e política, uma vez que o Código em vigor fora elaborado para uma nação predominantemente agrícola, com reduzida população urbana, sem os imensos problemas sociais do Brasil contemporâneo.