Discurso do Prof. Miguel Reale,
Supervisor da “Comissão Revisora
e Elaboradora do Código Civil”

  

Preclaro Presidente

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Altas Autoridades presentes

    Gentilíssimas Senhoras, Meus Senhores

                    Desejo, inicialmente, felicitar a Vossa Excelência, senhor Presidente, por ter dedicado cerimônia especial à sanção da Lei que institui o novo Código Civil, o que vem confirmar sua visão de estadista.

               Estamos, hoje, solenemente mudando de Código Civil, o qual constitui o miolo ou cerne do ordenamento jurídico da sociedade civil, fixando as diretrizes básicas que irão reger a forma de vida da gente brasileira. Costumo dizer que o Código Civil é o código do homem comum, visto como ele dispõe sobre a situação social e a conduta dos seres humanos, mesmo antes de seu nascimento, dadas as normas protetoras dos nascituros, e depois de sua morte, por preservar a sua última vontade e fixar o destino de seus bens.

               Em virtude do tempo disponível, seria absurdo perder-me na minuciosa análise das alterações fundamentais introduzidas em nossa legislação civil, sendo preferível, em breve síntese, dizer algo sobre o espírito que presidiu a reforma feita, a qual assinala a passagem de um sistema de regras destinado a reger uma nação fundamentalmente agrária, à qual se destinava o Código de 1916, para uma estrutura cultural marcada por novos valores sociais, e pelas mais avançadas conquistas da ciência e da tecnologia. Nesse sentido bastará lembrar que, nas primeiras décadas do século passado, 70% do povo brasileiro moravam no campo, enquanto que, hoje em dia, em igual proporção, vivem nas cidades.

               O Código Civil ainda em vigor por mais um ano, representou, sem dúvida, uma contribuição estupenda da ciência jurídica nacional, mas, não obstante o seu alto valor, acrescido por precioso cabedal de doutrina e de jurisprudência, não mais corresponde às necessidades histórico-sociais de nosso tempo, máxime se atentarmos para as vertiginosas inovações ocorridas, em todos os planos da cultura universal, durante o século passado, o mais curto e revolucionário dos séculos, pois começa, a bem ver, com a primeira Grande Guerra e termina com a derrocada do Muro de Berlim.

               Tão grande é o respeito que tenho pela obra do insígne Clovis Bevilaqua que, ao ser convidado pelo Governo da República, em 1969, para superintender à atualização de nossa Lei Civil, após duas tentativas malogradas, preferi fazê-lo em colaboração com uma plêiade de jurisconsultos eminentes, cujos nomes faço questão de evocar  neste instante solene: Agostinho Alvim, José Carlos Moreira Alves, Clóvis do Couto e Silva, Silvio Marcondes, Torquato Castro e Ebert Chamoun. Quatro deles já faleceram, mas todos exerceram a missão recebida com dedicação e zelo, sem exigir qualquer compensação além da representada pela oportunidade que tinham de bem servir à comunidade nacional.

               Foi em 1970 que deles recebi, para sintetiza-las, as propostas correspondentes a cada uma das áreas a eles conferidas, segundo estrutura inicial antes acertada, a qual abrange uma Parte Geral, conforme a concebeu o gênio de Teixeira de Freitas, e cinco Partes Especiais relativas ao Direito das Obrigações, ao Direito da Empresa, ao Direito das Coisas, ao Direito de Família e ao Direito das Sucessões. Conforta-me verificar que a estrutura inicialmente adotada resistiu a todas as críticas suscitadas pelo Anteprojeto, salvo no que se refere à Lei das Sociedades Anônimas que, com o nosso assentimento, foi destacada do Código para figurar em Lei Especial, mais adequada a disciplinar tal matéria em função do contínuo dinamismo do mercado de capitais.

               Seja-me lícito ponderar que a estrutura do novo Código Civil não encontra simile em qualquer outra nação, constituindo uma ordenação original em consonância com a nossa própria experiência jurídica e legislativa, na qual veio espontaneamente se compondo a unidade do Direito das Obrigações, em razão da vetustez do Código Comercial de 1850.

               É indispensável ponderar que o novo Código Civil não abrange todo o Direito Privado, mas tão somente as questões que emergem da unidade do Direito das Obrigações, como é o caso das normas relativas à atividade empresarial, permanecendo, pois, intocável o Direito Comercial com a respectiva legislação especial.

               Foi sabidamente longa a tramitação do projeto que agora se converte em lei, mas não tem sentido afirmar-se que, em razão do grande tempo decorrido, o novo Código Civil já nasceria velho, como se não houvessem sido aproveitadas todas as oportunidades para sua atualização e complemento, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado Federal, levando-se sempre em conta as alterações verificadas no plano dos fatos ou da legislação.

               É com a responsabilidade que me advém da longa idade e de aturado estudo que posso assegurar, senhor Presidente, que vai ser sancionada uma Lei Civil que será da maior valia para o País, sobretudo em razão dos princípios de eticidade, socialidade e operabilidade que presidiram a sua elaboração. Sei que não se trata de trabalho perfeito, tão limitada é a nossa capacidade intelectiva em todos os domínios da cultura, mas estou convencido de que as falhas ou omissões porventura existentes são de caráter secundário e de fácil correção. Faço questão de proclamar que os membros da “Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil” sempre estivemos abertos à recepção de novos aperfeiçoamentos, toda vez que fomos convidados a nos manifestar sobre a discussão do Projeto no seio da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Após a aprovação de tantas emendas substitutivas e aditivas, trata-se, a bem ver, de obra transpessoal, fruto das contribuições recebidas de toda a comunidade jurídica brasileira.

               Desde o pórtico dos Direitos da personalidade – inexistente no Código de 1916 – até as normas estabelecidas em razão da função social da propriedade e do contrato; desde a maioridade aos dezoito anos até a revisibilidade do regime de bens no casamento; desde a extinção do “pátrio poder”, substituído pelo “poder familiar”, até os dispositivos que salvaguardam o real interesse da prole; desde as novas figuras criadas no campo do Direito das Obrigações até a disciplina da atividade empresarial; desde a preferência dada às “cláusulas abertas”, propiciadoras de ampla compreensão hermenêutica e de maior interferência do juiz na solução dos conflitos, até as novas regras sobre responsabilidade objetiva; desde a constante remissão aos princípios de equidade e de boa-fé até o tratamento da posse de bens imóveis em razão do valor do trabalho que a motiva; desde a eliminação de formalidades absurdas na lavratura dos testamentos até a preservação dos direitos dos herdeiros, do cônjuge inclusive, é toda uma nova atmosfera normativa que surge no mundo do Direito, com  paradígmas de renovado humanismo existencial.

               É por tudo isso que, nesta hora solene, senhor Presidente, sinto em minha consciência a incontida convicção do dever cumprido, agradecendo a Deus por ter-me dado a oportunidade de assistir à sanção da nova Lei Civil, não se podendo olvidar a participação criadora do Congresso Nacional, ao qual rendo justa homenagem na pessoa dos três relatores gerais que atuaram na matéria, Ernani Satyro e Ricardo Fiusa, na Câmara dos Deputados e Josaphat Marinho, no Senado Federal, os quais tudo fizeram para atualizar o projeto inicial, situando-o em consonância com os mais altos interesses do Brasil.