O MILAGRE  DA  UNIDADE  NACIONAL

MIGUEL REALE

 

                        Um dos fatos históricos que mais desafiam nossa constante vontade de chegar às raízes dos problemas é a unidade político-social da América portuguesa em contraste com o esfacelamento do mundo hispânico, no mesmo continente, em impressionante número de repúblicas de pequeno e grande porte.

                  Essa matéria tem sido objeto de estudo por parte de historiadores, sociólogos e juristas nacionais e estrangeiros, mas restam sempre inquietantes perguntas, sobretudo no que se refere ao Brasil.

                  Tais indagações pressupõem a colocação de uma questão nuclear sobre o sentido da história, suas múltiplas causas e motivos, não havendo mais quem seja adepto de uma compreensão causal ou unilinear das civilizações que se sucederam ao longo dos milênios vividos pela humanidade sobre a face da Terra.

                  Foi talvez Machiavelli o primeiro pensador a situar a questão sobre dados positivos, reconhecendo que, ao lado do desenrolar causal dos acontecimentos, estes não raro sofrem inesperados desvios atribuíveis a fatores exteriores, à fortuna, a qual vem alterar substancialmente o processo histórico, ora favorecendo, ora se contrapondo aos desígnios dos governantes e dos povos.

                  Nessa mesma ordem de idéias, Jacques Monot apresenta as múltiplas combinações de azar e da necessidade no desenvolvimento da história. Muitas vezes, os acontecimentos inesperados, à margem do que era previsto, determinam o advento de fatores que dão sentido favorável a um fim desejável, mas ainda impreciso.

                  É o que acontece no Brasil no que se refere à sua unidade territorial, à formação de uma consciência nacional superior às forças a elas contrapostas.

                  Se analisarmos serenamente a situação brasileira, tudo parecia levar ao desmembramento, tais os contrastes existentes no imenso território, tanto do ponto de vista geográfico como demográfico, com populações dispersas sem ligações naturais.

                  Tudo ameaçava a constituição de populações regionais tendentes a se distinguirem em diversos grupos etnográficos, cada um com a sua estrutura política independente, e, no entanto, o que prevaleceu foi a unidade, sempre ameaçada. Bastará dizer que, no início da vida colonial, Portugal organizou dois governos, um ao norte e outro ao sul. Como na América Latina, o Estado precedeu a nação, bem se pode prever o risco dessa dualidade, felizmente de pouca duração.

                  Um dos fatos contrários ao que depois viria a ser o território brasileiro é o Tratado de Tordezilhas, do qual, após várias peripécias, resultou que a linha divisória entre Espanha e Portugal correria de Belém do Pará a Laguna, em Santa Catarina. Essa partilha redundava em invasão às bandeiras paulistas que avançavam muito além do atribuído ao reino espanhol.

                  Mas acontece, então, a primeira grande surpresa histórica, com o reconhecimento de Felipe II da Espanha como rei de Portugal. Fundiam-se os dois territórios, e, com isso, legitimava-se a posse brasileira nas regiões aquém da linha divisória, com a qual se quisera partilhar o mundo, sob a égide da Igreja.

                  Restaurada, em 1.640, a monarquia portuguesa com João VI, continuaram os luso-brasileiros na posse das terras ocupadas na era filipina, não deixando a Espanha de reinvindicá-las como abrangidas por sua soberania. Essa situação, que aumentava gigantescamente o território da colônia portuguesa, permaneceu “irregular” durante dezenas de anos até o Tratado de Madri, em 1750, quando o gênio do jurista Alexandre de Gusmão, diplomado por Coimbra e Paris, logrou fazer prevalecer a tese do uti possidetis, segundo a qual a posse atual das terras determinava a que Estado elas pertenceriam. Como se vê, foi o imprevisível reinado filipino a fonte legitimadora do nosso imenso território.

                  Poucos anos depois, novo episódio imprevisto iria marcar a situação política brasileira, levando-a à sua emancipação. Refiro-me à invasão de Portugal pelo exército de Napoleão, e a fuga do governo de Lisboa para o Rio de Janeiro, com que tinha início o processo de nossa independência.

                  Não vou aqui relembrar o que representou a presença da família real lusitana no Brasil, tendo à frente o logo depois Don João VI, figura complexa e tolamente ridicularizada, quando, na realidade, se revelou um soberano à altura do momento histórico em que exercia o poder, convencendo-se de que a separação e independência do Brasil era inevitável, razão pela qual, ao voltar à Europa, cuidou de nomear o príncipe Pedro para Regente do Reino no Brasil. Preservava-se, assim, a monarquia, forma de governo mais adequada para afrontar as futuras insurreições com ameaça de separatismo.

                  Por qualquer ângulo que se analise a alteração produzida pela invasão de Portugal pelas forças napoleônicas do general Junot, a conclusão a que se chega é que esse episódio, à margem da história luso-brasileira, veio decidir sobre nossa independência em 1822, confirmando a tese, exposta no início deste artigo, de que fatos exteriores e imprevisíveis podem alterar o sentido da história. Foi o que aconteceu no Brasil, cuja unidade nacional, como vimos, dependeu também do acaso.

                  É claro que o advento de Felipe I da Espanha, nem a invasão napoleônica produziriam os efeitos que tivemos, se já não houvesse “in nuce” uma consciência nacional luso-brasileira que milagrosamente prevaleceu sobre uma multiplicidade de fatores adversos, como as sucessivas invasões por parte de corsários franceses e ingleses, culminando com a longa ocupação de Maurício de Nassau, cujo brilho a tantos fascina. Mas as duas batalhas dos montes Guararapes estão aí para demonstrar a solidariedade das populações luso-brasileiras, apesar de dispersas na vastidão do que viria a ser o “território nacional”, heterogeneamente povoado por portugueses, luso-brasileiros, indígenas e negros que, como que inconscientemente, vieram constituindo uma nova pátria.

03/07/2004