AINDA  AS  GREVES  SELVAGENS

MIGUEL REALE

                   No seio da Comissão incumbida, em 1986, de elaborar um Anteprojeto de Constituição, em virtude de iniciativa do Presidente José Sarney, houve longos debates sobre a permissão do direito de greve nos serviços  considerados essenciais à coletividade, tanto na esfera pública quanto na privada.

                  Nessa ocasião, procurei demonstrar a inconveniência da greve nesses dois casos, por parecer-me que ela representava um gravíssimo  desequilíbrio nas relações sociais, pelo fato do funcionário e do trabalhador reivindicarem direitos e interesses valendo-se de penosos sacrifícios impostos ao povo.

                  Lembro-me que, nessa oportunidade, lembrei o ensinamento sábio de Emanuel Kant de que a pessoa humana não pode jamais ser transformada em instrumento de pressão para alcance de vantagens pretendidas por terceiros, por mais procedentes que elas sejam.

                  Em oposição a esse meu ponto de vista lançou-se mão do especioso argumento de que a pessoa dos grevistas já estaria servindo de instrumento de ilegítimos interesses, havendo, ademais, modos de limitar abusos, preservando-se a continuidade dos serviços essenciais à comunidade, tal como deveria constar de leis e, depois, foi previsto na Carta Magna de 1988.

                  Nessa ordem de idéias, o legislador estabeleceu, no Art. 11 da Lei nº 7.783 de 1989, que dispõe sobre o exercício do direito de greve, que “nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”...  No que se refere ao serviço público não há ainda norma legal correspondente, não obstante não seja mais necessária “lei complementar” para fazê-lo, após a Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998.

                  A esta altura dos acontecimentos, com sucessivas greves nos transportes coletivos, nas atividades bancárias, e após os 91 dias de suspensão dos trabalhos pelos serventuários da Justiça, já há experiência bastante para devermos reconhecer quanto foram ilusórias as promessas constitucionais e da legislação ordinária!

                  Ilusórios são também os dispositivos legais que, na hipótese de não atendimento das disposições das leis e dos tribunais quanto ao “mínimo de serviços a serem prestados”, o Poder Público fica obrigado “à prestação dos serviços indispensáveis”, bem como com a faculdade de recorrer à cooperação de terceiros...

                  Posta a questão nos seus devidos pressupostos reais, nem todas as espécies de trabalho comportam substituição dos grevistas, dados os requisitos técnicos que lhes são inerentes, nem haveria como, na prática, lançar mão de colaboração provisória recorrendo a desempregados.

                  O certo é que, proclamada a greve em serviços essenciais, públicos ou privados, a cessação dela dependerá tão somente da aquiescência dos empregados ou dos funcionários, que continuarão a privar a população de bens indispensáveis a sua subsistência e saúde.

                  Inútil seria pensar na possibilidade de uma reforma constitucional, que revogue o proclamado direito de greve nos casos que estamos analisando, pois há certas prerrogativas que, uma vez estabelecidas, tornam-se definitivas.

                  Nem creio que novos projetos de lei possam superar a crise em que nos encontramos, como decorrência previsível de excessivo apego a pretensos ideais democráticos e de justiça social.

                  Ressurgem, assim, as greves selvagens, não mais sob a forma de conflitos e retaliações, mas à custa da coletividade inerme, que somente poderá contar com apelos formulados através dos meios de comunicação.

                  Isto posto, há necessidade de recorrer a soluções de outro tipo, prevenindo as greves graças à mudança no exercício da política econômica e salarial.

                  Ninguém pode negar que, em muitos casos, há diferenças gritantes entre os lucros dos empresários e o salário por eles pago aos trabalhadores, o mesmo acontecendo com relação aos vencimentos atribuídos pela Administração aos funcionários de mais alta categoria e a seus subordinados.

                  Assim sendo, quando houver necessidade de reajuste nos vencimentos dos quadros administrativos, as decisões deverão levar em conta todos os que prestam serviços, e não apenas os funcionários hierarquicamente superiores.

                  Como se vê, impõe-se mudança de critério na apreciação salarial, respeitando-se, o mais possível, justa proporcionalidade entre todos os contemplados com aumento de lucros ou de remuneração.

                  É claro que situações há em que será imprescindível prevenir as greves, corrigindo-se as diferenças mais significativas, tudo dependendo de recursos disponíveis, o que não poderá deixar de ser levado em conta pelos dirigentes dos movimentos grevistas. É preciso reconhecer que o governo não pode deferir sempre por inteiro todas as reivindicações exigidas, não porque não o queira, mas sim por não possuir recursos bastantes, ou dever obedecer às determinações limitativas da Lei Fiscal.

                  No fundo, estamos tanto perante problemas de justiça social quanto de carência de meios econômico-financeiros, o que constitui um dos aspectos mais preocupantes da atual crise do capitalismo em quase todas as nações.

                  É essa relação essencial de equidade que também deveria orientar os poderes da República relativamente à fixação das alíquotas fixadas para cobrança do Imposto de Renda, há vários anos congeladas, não obstante a inflação real que corroe vencimentos e salários.   

                  09/10/2004