FRATURA SOCIAL APAVORANTE
MIGUEL REALE
Como já é do conhecimento comum, nas últimas décadas do século passado, sob a pressão das mudanças operadas no plano das idéias e dos processos tecnológicos, deu-se o que se convencionou chamar “revolução da mulher”. Esta consistiu não apenas no acesso da mulher a postos de trabalho, antes exercidos apenas por homens, como no surgimento de novas entidades familiares, como, por exemplo, a “união estável”, criada pela Constituição de 1988.
Ao lado desses fatos, ocorreu também uma queda relevante no plano moral, crescendo o número de pais que não hesitam em abandonar os filhos havidos no matrimônio e outras uniões familiares, quer para constituir outras, quer para fugir às responsabilidades que resultam da paternidade.
Foram todos esses fatores que determinaram uma profunda alteração na estrutura social, a qual deixou de ter como base essencial o casamento concluído segundo os mandamentos legais, considerado fundamentum reipublicae, ou seja, elemento primordial da sociedade.
O certo é que, com a instituição do divórcio e a mudança radical ocorrida nos costumes, acentuou-se desmedidamente a desconstituição das entidades familiares, com a opção dos progenitores por outras atrações da vida social.
Pois bem, no Brasil, conforme o revela o relatório do IBGE, com base em dados do ano 2.000, o numero de separações e divórcios subiu 32,5%, o que representa uma desconstituição social da maior relevância, cujas condições determinantes são atribuíveis a múltiplas causas, desde a mudança havida na vida conjugal, tornando-se os cônjuges infensos a suportar e superar as pequenas crises naturais no convívio familiar, até as seduções sexuais propiciadas pela civilização contemporânea.
O que, em primeiro lugar houve foi a diminuição na conclusão de casamentos, que de 5,1% passaram a 4,3%, ao mesmo tempo que cresciam as separações e divórcios, de tal modo que, em 1998, houve 28,2% de dissoluções para 100 uniões matrimoniais, enquanto que antes essa proporção ainda era de 21,2%.
Acresce que sobretudo nas camadas inferiores da comunidade, o que acontece, com bem maior freqüência, são uniões formadas à margem da lei, assim como é à margem da lei que elas deixam de existir, haja ou não prole.
O grave é que, quando existem filhos e são eles abandonados, devido à irresponsabilidade paterna, mostra o Censo que ocorre um aumento considerável no número de famílias sustentados tão somente por mulheres, as quais correspondiam a 10,5%, em 1999, e se elevaram a 14,2% em 2.000.
Nesta mesma página, em artigo intitulado As heroinas, já tive ocasião de enaltecer o mérito das mulheres que se sacrificam, reunindo, a duras penas, as horas de trabalho às destinadas à educação da prole. Quando não se dá essa assunção de responsabilidade, ou é ela insuficiente, o que temos são os meninos de rua, muitas vezes arrastados para as sendas do crime.
Em editorial recente do Jornal da Tarde, são lembradas as observações feitas a esse respeito por Robert Bly em seu livro The Sibling Society (A Sociedade dos Meios-Irmãos) mostrando as graves conseqüências de serem os filhos criados tão somente pela mãe, “com conceitos morais deformados pela ausência da figura paterna”, sendo a educação da criança transferida, quando o é, às escolas, passando, não raro, a televisão (e que televisão!) a constituir a única companhia de que ela dispõe em caráter permanente.
Como se vê, o abandono criminoso dos filhos pelo marido ou companheiro é um fato corriqueiro em nossa coletividade, cabendo notar que tal fato ominoso é um desafio ao que dispõe o nosso Código Penal, em seu artigo 244, impondo pena de detenção aos pais que não prestam assistência familiar.
Ora, perante um quadro dessa natureza, é necessário advertir que, no mais das vezes, a mãe abandonada não tem meios para propor ação visando a exigir alimentos do progenitor irresponsável, permanecendo este impune.
É o caso, por conseguinte, de indagar se não há mesmo meio legal para reparar situação tão revoltante, notadamente em virtude do papel que, em boa hora, o Ministério Público passou a desempenhar, a partir da Constituição de 1988, transformando-o em instituição primordial para a realização das funções essenciais à Justiça.
Pelo artigo 127 da Carta Magna, o Ministério Público “é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.
Na execução desse mandamento constitucional, nossos procuradores judiciais têm-se esmerado na interpretação da missão constitucional que lhes foi outorgada, às vezes até de maneira exagerada, dando sentido amplo aos “interesses difusos e coletivos”, a que se refere o inciso III do artigo 129 da Lei Maior.
Assim sendo, indago se não seria o caso do Ministério Público ir ao encontro dos interesses e direitos das mulheres desamparadas por seu infiel companheiro, criando uma secção destinada a tornar uma realidade a citada disposição penal e a assegurar as obrigações constantes da Lei Civil.
Não creio possa haver interesses sociais maiores e mais legítimos dos que têm sido objeto de meu exame, nem missão tão essencial à nossa organização social, envolvendo não somente o Ministério Público, mas também as Procuradorias do Estado em conexão com as Secretarias incumbidas da prestação de assistência social à nossa gente.
Aproveito este artigo para esclarecer que, ao tratar da união estável, o novo Código Civil não podia estendê-la aos homosexuais, uma vez que o § 3º do artigo 226 a reconhece apenas quando formada “entre o homem e a mulher (.....) devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
Isto não impede, no entanto, que, mediante lei especial, seja disciplinada a união entre homosexuais, tratando de seus interesses, inclusive no que se refere ao Direito de Sucessão. O Código Civil não é repositório de todas as relações sociais, destinando-se principalmente a reger aquelas que já se acham de certa forma consolidadas.
02/02/02