ESTATIZAÇÃO  DO JORNALISMO

MIGUEL REALE

                  O Projeto de Lei, que cria o Conselho Federal de Jornalismo, atenta, a um só tempo, contra a Constituição e as leis do País, visando privá-lo da liberdade de imprensa, conquista e garantia essencial da democracia.

                  Muitas e procedentes foram as críticas suscitadas por essa infeliz proposta legislativa, mas não se atentou devidamente a uma questão básica, posta por seu Art. 1º, que é a instituição do CFJ como “autarquia (sic) dotada de personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira.”

                  Ora, a autarquia, como explica, com a sua habitual clareza, o saudoso mestre Hely Lopes Meirelles, é “forma de descentralização administrativa (note-se) através da personificação de um serviço retirado da Administração centralizada. Por essa razão à autarquia só deve ser outorgado serviço público típico, e não atividades industriais ou econômicas, ainda que de interesse coletivo”.

                  À luz desse ensinamento, entra pelos olhos que, se era propósito fiscalizar o exercício da profissão de jornalista, criando o respectivo registro, jamais se poderia pensar em uma organização autárquica, em se tratando de  “atividade de comunicação” que se confunde com a própria liberdade democrática.

                  A autarquia, ainda que especial, nunca deixa de ficar vinculada a este ou àquele órgão da Administração, em geral indicado pela lei, ao qual ela se subordina, por maior que seja a autonomia conferida.

                  É a razão pela qual, quando se tratou da organização da profissão dos advogados, a OAB foi declarada serviço público, sendo dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tendo-se o cuidado de determinar na lei instituidora, como o repetiu depois a Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, ora em vigor, que “a OAB não mantém com órgão da Administração Pública qualquer vínculo funcional e hierárquico” (art. 44, § 1º).

                  Tendo-se, como se vê, um modelo de preservação da autonomia e da liberdade, somente uma arriscada e malévola intenção explica o recurso à idéia de autarquia...

                  O que se pretende, em suma, de maneira ostensiva, é submeter ao Estado a atividade jornalística, atribuindo-se ao Conselho Federal de Jornalismo competência para supervisionar e fiscalizar o exercício da profissão de jornalista em todo o território nacional; editar o respectivo Código de Ética e Disciplina; assim como definir as condições para inscrição do profissional e suspensão e cancelamento de seu registro.

                  Não se poderá conceber quadro de subordinação à Administração Pública mais preciso e rigoroso de uma atividade que constitui raiz essencial do direito de comunicação.

                  Nada seria preciso acrescentar para demonstrar a inconstitucionalidade da proposta governamental, mas não é demais demonstrar outros pontos em que ela conflita gritantemente com a Constituição de 1988, que além de proclamar que “é livre a manifestação do pensamento”, acrescenta que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação”. (Art. 5º, Inciso IV e IX).

                  O legislador constituinte teve tal apreço pelo valor da comunicação social, que caracteriza a nossa era, que lhe dedicou capítulo especial (artigos 220 usque 224) no qual é declarado que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição”.

                  Como se tal enunciado não bastasse, adverte o § 1º do Art. 220 que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística  em qualquer veículo de comunicação social”.

                  Como se vê, são mandamentos de nossa própria Carta Magna que vetam a forma pela qual se pretende criar o CFJ como ente autárquico munido de múltiplos instrumentos de censura e de subordinação da atividade jornalística, atingindo tanto as respectivas empresas como os que nelas exercem sua profissão.

                  Alegar-se-á que, à vista de conhecidos e reiterados abusos, se justifica a existência de preceitos legais que protejam o garantido pelo Inciso X do Art. 5º da Lei Maior, que considera “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”, mas não faltam formas e meios legítimos para salvaguarda dessas prerrogativas fundamentais.

                  Não há dúvida que deve haver um órgão, revestido de autoridade pública, com poderes para, sem delongas jurídicas, apurar a responsabilidade dos jornalistas que, sem base em provas ou em indícios plausíveis e ponderáveis, mas apenas para sua promoção individual, expõe pessoas naturais ou jurídicas à exacração pública. Mais do que quaisquer outros, os informantes, que operam na mídia, devem saber que a necessária vigilância é condição da liberdade de comunicação, se e quando exercida com a devida responsabilidade objetiva.

                  Por outro lado, apurada a improcedência da acusação feita, as empresas de comunicação, sob pena de graves sanções, devem publicar, incontinenti, a respectiva retificação com o mesmo destaque com que veicularam a falsa notícia.

         É claro que esse poder fiscalizador  e corretivo pressupõe a existência de um ente instituído mediante mandamentos legais, o que legitima a criação de um Conselho Federal de Jornalismo nos moldes da OAB, com competência para promulgar o seu Código de Ética, e ter condições de efetivamente obrigar os transgressores a seu exato e pronto adimplemento.

25/09/2004