ESPÍRITO DA REVOLUÇÃO CONSTITUCIONALISTA
MIGUEL REALE
Os grandes acontecimentos históricos dependem de uma variegada multiplicidade de fatores e motivos, nem sempre sendo possível apresentar a sua motivação determinante.
É o que acontece com a revolução constitucionalista de 1932, para a
qual Célio Debes indica três ordens de causas principais, a política, a
militar e a cívica, com predomínio desta.
Não posso discordar dessa análise, mas talvez seja necessário completá-la
sob outros prismas, a partir da vivência pessoal que tive dessa estupenda
insurreição.
Era, então, estudante do 2º ano do curso de bacharelado da Faculdade de
Direito do Largo de São Francisco, ainda instituto federal, o mesmo fundado por
D. Pedro I, em 1827, conjuntamente com o de Olinda, depois transferido para o
Recife.
Em confronto com a pletora atual de alunos matriculados em dezenas de
instituições, formávamos um reduzido grupo de jovens congregados no único
estabelecimento existente destinado ao estudo do Direito. A rigor, não se
tratava de uma Casa que só cuidasse de Jurisprudência, pois, ainda não
havendo universidades com ensino de Filosofia, Letras, Economia, ou Sociologia,
era a única opção para quem tivesse vocação para o cultivo de ciências
humanas e sociais.
Era natural que, em tal ambiente, ao lado de idéias jurídicas,
fervilhassem debates sobre os grandes problemas da civilização, em todos os
domínios do espírito, indo os jovens muito além das preleções dos
professores catedráticos, - não raro apegados à letra dos códigos e das
sentenças dos tribunais.
No fundo, interessavam-nos mais os legados poéticos de Alvares de
Azevedo e Castro Alves, bem como as pregações políticas de Rui Barbosa e
Joaquim Nabuco. Não que não nos interessasse a problemática jurídica, mas
sentíamos mais imperiosa a necessidade de mudar as instituições, de traçar
novos rumos para a sociedade e o Estado, sobretudo depois que a revolução de
1930 – cujas raízes remontavam ao levante inovador de 1922, em Copacabana -
abrira horizontes que nos pareciam ameaçados pelo retorno à rotina dos antigos
partidos da República Velha.
Foi, nessa época, que os moços passaram a viver com maior paixão as
teorias político-sociais em conflito, inconformados todos com tímidas soluções
liberais, por demais vinculadas a questões eleitorais, como, por exemplo, a do
voto secreto.
Havia, pois, um natural contraste de ideologias, sobretudo no tocante ao
socialismo, alguns se inspirando no marxismo, e outros o repelindo por suas
diretrizes materialistas, sem se falar na repercussão que já vinham tendo no
Brasil as doutrinas corporativistas, de cunho autoritário ou democrático.
No meu caso pessoal, minha crise marxista foi superada pela idéia do
“socialismo liberal” pregado por Carlos Rosselli, e que, várias décadas
depois, iria ter a simpatia de Norberto Bobbio... Foi nessa posição que me
alistei na revolução constitucionalista, na qual via um meio de assegurar o pluralismo das ideologias em um quadro democrático.
O movimento de 1932, na realidade, não tinha conteúdo ideológico,
reunindo adéptos de todas as correntes políticas, desde os conservadores
impedernidos do antigo perrepismo até os que, sem saber direito o que queriam,
ansiavam por profundas mudanças na política nacional. Alegam alguns
esquerdistas que o operariado se manteve alheio ao referido movimento, que seria
tipicamente da classe média, mas essa asserção não corresponde à realidade,
tal o número de operários, que, no campo e nas cidades, o apoiaram.
A minha convicção é a de que no episódio da revolução
constitucionalista o que predominava era o
ideal democrático como tal, sem adjetivo, sem colorido ideológico, mas
como esperança comum de um regime que viesse assegurar a todos o direito de
escolher livremente o próprio caminho. Isto explica o seu caráter não
classista, bem como a entusiástica tomada de posição da mulher paulista de
todas as categorias sociais, colocando-se na vanguarda dos acontecimentos, a
começar pela marcha inicial pela família e pela democracia.
O que houve, em 1932, foi um levante que não se compreende sem se levar
em conta o espiritualismo que nele predominou. Nada tem mais significado e força
do que um ideal aberto a uma multiplicidade de vias que conduzam à conquista da
liberdade de pensar e de agir. É esse sentido espiritualista que nos faz compreender a decisão de doar as próprias alianças
matrimoniais para serem fundidas em prol da causa comum.
Não se trata, pois, apenas de civismo, mas de algo
mais profundo, de um clima espiritual de solidariedade que assinalou o
ponto culminante da Revolução, quando já se pressentia a vitória das forças
governamentais da ditadura que se tornara beneficiária do processo revolucionário
começado em 1922, fazendo-nos retroagir ao autoritarismo castilhista que
imperou no Rio Grande do Sul.
É por essa razão que foi só no plano material imediato que a Revolução
de 1932 foi vencida. Na realidade, ela implantou no País um sentido de
democracia necessária, tão forte que
Getúlio Vargas e seus companheiros não puderam resistir à reivindicação
constitucionalista generalizada, culminando na Constituição de 1934, a qual
teve vida curta por seu hibridismo, com uma postiça representação classista
na Câmara dos Deputados, e também por se travarem infelizes competições
partidárias que iriam conduzir ao Estado Novo, em 1937, quando teria início
uma nova fase política atormentada pelo conflito das ideologias até o sombrio
desfecho de 1964.
Já agora, com três quatriênios sucessivos de democracia
representativa, poder-se-á dizer que, tudo somado, vencedor foi o movimento
paulista de 1932.
17/07/2004