DA EXPERIÊNCIA JURÍDICA À FILOSOFIA

 

 

Miguel Reale

 

 

                                                         Hans Kelsen, nos primórdios de sua Teoria Pura do Direito, ao mesmo tempo que beneficamente alargava o espectro do conceito de norma jurídica, libertando-nos do predomínio absoluto da norma legal, lançava as bases de um normativismo integral que implicava a identidade da Teoria do Direito com a Teoria do Estado, ou, por outras palavras, a redução da atividade política à atividade jurídica. Entendia ele que, somente desse modo, se alcançaria uma democracia como pura expressão da vontade popular, sem a interferência deformadora do poder governamental sempre sujeito a contínuos desmandos.

 

                                                         De acordo com essas diretrizes, a sua obra fundamental intitulada Allgemeine Staatslehre (Teoria Geral do Estado) publicada na Áustria em 1925, era ao mesmo tempo de Direito e de Política, estabelecendo uma correlação ideal entre um e outro domínio, de tal modo que a democracia verdadeira, no fundo, seria expressão do Estado compreendido como um sistema unitário de normas jurídicas dotadas de coação, entendida esta como puro enlace lógico de subordinação das normas inferiores às superiores até uma norma transcendental que dava validade a todo o ordenamento normativo. “Se o Estado, escrevia ele, é a ordem jurídica, a Teoria do Estado tem que coincidir com a Teoria do Direito; do mesmo modo que a Política – doutrina do Estado justo – coincide com a Filosofia Jurídica – doutrina do Direito justo”.

 

                                                         Não era possível ir além dessa idealização do mundo jurídico, a qual era o resultado da abstração total do poder como um fato histórico até então sempre considerado um correlato do Direito, mas não identificado com ele.

 

                                                         Quando ainda estudante na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – a única existente em São Paulo, na década de 1930 – não podia deixar de passar pelo idealismo sedutor de Kelsen, mas, ao publicar, em 1934, o meu primeiro livro, O Estado Moderno, já ousava dele divergir, considerando o poder estatal um fato social e histórico, distinto do Direito, e, como tal, objeto da Ciência Política, dotada de metodologia própria.

 

                                                         Esse modo de ver foi fortalecido com a leitura da Filosofia do Direito de Gustavo Radbruch, traduzida pelo grande jusfilósofo português Cabral de Moncada, onde há a demonstração cabal de que as atividades jurídicas e políticas constituem dois fenômenos distintos integrantes do mundo da cultura.

 

                                                         Em 1940, ao redigir minha tese sobre os Fundamentos do Direito, para concorrer à cátedra  de Filosofia do Direito da referida Faculdade, cuidei de terminar um livro que vinha escrevendo logo após meu exílio na Itália – conseqüência de minhas atividades integralistas – livro esse que denominei Teoria do Direito e do Estado, apresentando-o à Congregação das Arcadas como título, graças ao apoio jamais esquecido da Livraria Editora Martins.

 

                                                         Nesse meio tempo dera-se uma significativa reviravolta na teoria de Hans Kelsen, que, por ser judeu, tivera de transferir-se para os Estados Unidos da América. Em contato com o Common Law, que não se filia à corrente legalista européia, oriunda do Código de Justiniano, mas sim a uma experiência ao mesmo tempo costumeira e jurisprudencial, Kelsen, como grande homem de ciência que era, não podia deixar de reconhecer o papel que o fato social exerce na formação da norma jurídica, reescrevendo sua citada obra fundamental, já agora com o título expressivo General Theory of Law and State, publicada em 1946 pela Harvard University Press, conforme exemplar com dedicatória que muito me envaidece.

 

                                                         Maior vaidade (e quem não a tem?) foi verificar a coincidência da denominação dada a seu livro, mas, se, por um lado, Kelsen adaptava a sua obra básica às peculiaridades do Common Law, nem por isso abandonava o seu normativismo essencial, que integrava em seu dever ser o fato social como um de seus motivos geradores.

 

                                                         Dava-se comigo um fato diverso, porquanto cada vez mais me parecia necessário ir além de Radbruch, não me limitando a vislumbrar na experiência jurídica a existência de três perspectivas: a do fato (objeto por excelência da Sociologia jurídica), a do valor do justo (objeto da Filosofia do Direito) e a da norma (objeto essencial da Ciência do Direito), tal como ainda pensava ao redigir Fundamentos do Direito, em 1940.

 

                                                         O que ocorreu foi minha progressiva convicção de que o tridimensionalismo deve ser por inteiro o mesmo para o jurista, o sociólogo e o jusfilósofo, com mudança apenas no enfoque do tema em apreço, ou, por outras palavras, que o jurista, examina a norma jurídica em função do fato e do valor; o sociólogo, o fato social em função dos dois outros fatores; e o filósofo do Direito o valor tendo em vista o fato e a norma.

 

                                                         A solução para essa forma de entendimento só encontrei quando tive a idéia de que fato, valor e norma se dialetizam, a meu ver segundo a dialética de complementaridade, e não a de oposição aplicada por Hegel. Segundo o jusfilósofo espanhol Sanchéz De La Torre, antes dessa idéia de dialetização dos três apontados fatores, não se poderia falar, apropriadamente, em “Teoria Tridimensional do Direito”.

 

                                                         Por outro lado, cabe lembrar que foi no mesmo ano de 1968 que foram editados dois de meus livros geminados, Teoria Tridimensional do Direito e O Direito como Experiência, aquele traduzido pouco depois para o castelhano, e este para o italiano. No meu entender, essas duas obras não podem ser interpretadas separadamente, porque foi o conceito de experiência que lançou nova luz sobre meu pensamento. Sem essa visão integral não se pode falar em concreção jurídica, da qual a teoria tridimensional é uma espécie, ao lado das doutrinas desenvolvidas por Engisch, Betti, Larenz e tantos outros jusfilósofos contrários à concepções jurídicas desvinculadas da práxis.

 

                                                         Ademais, foi o conceito de experiência que me reconduziu à remeditação do culturalismo, desde Experiência e Cultura, cuja 1a edição é de 1977, com tradução francesa em 1990,  até Verdade e Conjetura e Cinco temas do Culturalismo, obras em que desenvolvo o pensamento conjetural, com pontos de vista não abordados por Karl Popper, e suscito o problema de um a priori cultural, sob inspiração tanto de Kant como de Husserl.

 

                                                         Penso ter assim respondido a questões formuladas pelo prezado colega peruano Domingo García Belaunde, ao indagar das raízes do tridimensionalismo.  

 

17/08/02