OS  DIREITOS  DA  PERSONALIDADE

MIGUEL REALE

 

            O novo Código Civil começa proclamando a idéia de pessoa e os direitos da personalidade. Não define o que seja pessoa, que é o indivíduo na sua dimensão ética, enquanto é e enquanto deve ser.

         A pessoa, como costumo dizer, é o valor-fonte de todos os valores, sendo o principal fundamento do ordenamento jurídico; os direitos da personalidade correspondem às pessoas humanas em cada sistema básico de sua situação e atividades sociais, como bem soube ver Ives Gandra da Silva Martins.

         Segundo os partidários do Direito Natural clássico, que vem de Aristóteles até nossos dias, passando por Tomás de Aquino e seus continuadores, os direitos da personalidade seriam inatos, o que não é aceito pelos juristas que, com o Renascimento, secularizaram o Direito, colocando o ser humano no centro do mundo geral das normas ético-jurídicas. Para eles trata-se de categorias históricas surgidas no espaço social, em contínuo desenvolvimento. Não cabia ao legislador da Lei Civil tomar partido ante essas divergências teóricas, ainda que fazendo referência também ao Direito   Natural Transcendental, na linha de Stammler ou de Del Vecchio.

         O importante é saber que cada direito da personalidade corresponde a um valor fundamental, a começar pelo do próprio corpo, que é a condição essencial do que somos, do que sentimos, percebemos, pensamos e agimos.

         É em razão do que representa nosso corpo que é defeso o ato de dele dispor, salvo por exigência médica, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes, salvo para fins de transplante.

         Estatui o Código Civil que é válida com objetivo científico, ou altruista, a disposição gratuita do próprio corpo, para depois da morte, ninguém podendo ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.

         Eis aí os mandamentos que estão liminarmente na base dos atos humanos, como garantia principal de nossa corporeidade, em princípio intocável.

         Vem, em seguida, a proteção ao nome, nele compreendido o prenome e o sobrenome, não sendo admissível o emprego por outrem do nome da pessoa em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória. É o mesmo motivo pelo qual, sem autorização, é proibido o uso do nome alheio em propaganda comercial.

         Em complemento natural a esses imperativos éticos, são protegidos contra terceiros a divulgação de escritos de uma pessoa, a transmissão de sua palavra, bem como a publicação e exposição de sua imagem.

         São esses os que podemos denominar direitos personalíssimos da pessoa, assim como a inviolabilidade da vida privada da pessoa natural, devendo o juiz, a requerimento do interessado, adotar as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

         Nada mais acrescenta o Código, nem poderia enumerar os direitos da personalidade, que se espraiam por todo o ordenamento jurídico, a começar pela Constituição Federal que, logo no artigo 1º, declara serem fundamentos do Estado Democrático do Direito a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa.

         Enquanto titular desses direitos básicos, a pessoa deles tem garantia especial, o que se dá também com o direito à vida, a liberdade, a igualdade e a segurança, e outros mais que figuram nos Arts. 5º e 6º da Carta Magna, desde que constituam faculdades sem as quais a pessoa humana seria inconcebível.

         Não há, pois, como confundir direitos da personalidade, que todo ser humano possui como razão de ser de sua própria existência, com os atribuídos genérica ou especificamente aos indivíduos, sendo possível a sua aquisição. Assim, o direito de propriedade é constitucionalmente garantido, mas não é dito que todos tenham direito a ela, a não ser mediante as condições e processos previstos em lei.

         Poderíamos dizer, em suma, que são direitos da personalidade os a ela inerentes, como um atributo essencial  à sua constituição, como, por exemplo, o direito de ser livre, de ter livre iniciativa, na forma da lei, isto é, de conformidade com o estabelecido para todos os indivíduos que compõem a comunidade.

         Como já disse, cada direito da personalidade se vincula a um valor fundamental que se revela através do processo histórico, o qual não se desenvolve de maneira linear, mas de modo diversificado e plural, compondo as várias civilizações, nas quais há valores fundantes e valores acessórios, constituindo aqueles as que denomino invariantes axiológicas. Estas parecem inatas, mas assinalam os momentos temporais de maior duração, cujo conjunto compõe o horizonte de cada ciclo essencial da vida humana. Emprego aqui o termo horizonte no sentido que lhe dá Jaspers, recuando à medida que o ser humano avança, adquirindo novas idéias ou ideais, assim como novos instrumentos reclamados pelo bem dos indivíduos e das coletividades.

         Ora, a cada civilização corresponde um quadro dos direitos da personalidade, enriquecida esta com novas conquistas no plano da sensibilidade e do pensamento, graças ao progresso das ciências naturais e humanas.

         O último valor adquirido pela espécie humana é o ecológico, por força do qual estabelece o Art. 225 da Lei Maior que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para a presente e futuras gerações”. Trata-se já agora de novo direito da personalidade.

         O que podemos esperar, sob a perspectiva histórico-cultural aqui exposta, é que, no futuro, novas aquisições aconteçam, transformando em direitos da personalidade as que ainda constituem possibilidade de ser e de agir para o maior número de seres humanos.

         17.I.2004