EM DEFESA DOS VALORES HUMANÍSTICOS

MIGUEL REALE

                              Foi pelo menos oportuna a publicação nesta página (28/02 – A2) de meu artigo sobre “o primado dos valores antropológicos”, porque, à vista das duas cartas de leitores contrários às minhas idéias, ficamos sabendo em que se baseiam os partidários do “fundamentalismo ecológico” de alguns mentores de nosso Ministério Público ao impugnarem, a pretexto de salvaguarda do meio ambiente, obras públicas e privadas que visam atender a iniciativas de inegável interesse público.

                              Alegam eles que, no mundo atual, prevalece o entendimento de que o homem deve ser encarado “como um ser vivo como outro qualquer”, sendo o ecológico um “valor absoluto”, de tal modo que não cabe mais falar em subordinação da Ecologia à Antropologia, nem tampouco que se defenda a natureza em razão da pessoa humana.

                              Para legitimarem suas atuações na esfera judicial, chegam a dizer que assim o determina a Constituição Federal, bastando a leitura do Art. 170, inciso VI, “o qual subordina o desenvolvimento econômico à proteção do meio ambiente”, o que é só em parte certo, visto como os demais incisos desse mesmo artigo estabelecem outros valores a que o desenvolvimento está subordinado, ou seja, a função social da propriedade, a livre concorrência, a defesa do consumidor, ou a redução das desigualdades regionais ou sociais. Um dos erros banais de Hermenêutica Jurídica consiste em destacar um preceito da lei ou uma cláusula do contrato para com esse elemento abusivamente isolado fundamentar seu ponto de vista...

                              Na realidade, a verdade é bem outra, pois a nossa Carta Magna, logo no Art. 1o, de manifesto sentido preambular, insere, entre os “fundamentos(sic) do Estado Democrático de Direito, “a dignidade da pessoa humana” e a “livre iniciativa”, a qual somente pode ser obstada, entre outras razões, por irrecusável dano que possa ser causado ao meio ambiente. Assim sendo, é necessário, em tal caso, um balanceamento sereno e objetivo dos interesses e valores em jogo, sem predomínio de fanático apego a um só deles, máxime com base em frágil visão materialista do mundo.

                              Quanto à  “dignidade da pessoa humana”, entra pelos olhos que o legislador constituinte não a teria enaltecido, se ele estivesse convencido de que o homem é “um ser vivo como outro qualquer”!

                              O proclamado pela Constituição de 1988 corresponde plenamente à idéia de que a pessoa humana é, como costumo dizer, o valor-fonte de todos os valores individuais e coletivos, possuindo algo que a distingue substancialmente da natureza dos outros animais. Se assim não fosse, aliás, não assistiria razão para o Art. 1o do novo Código Civil estatuir que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”.

                              O primado, por conseguinte, dos valores antropológicos sobre os ecológicos tem como base o valor primordial da pessoa humana, o único ser vivo que tem consciência do que é e do que deve ser. Somente ela é dotada da faculdade que os juristas italianos denominam consapevolezza, que poderíamos traduzir por conscienciabilidade, ou seja, o poder de ter ciência de si mesmo e de deliberar em razão dela.

                              Não se trata de antropocentrismo que coloque o ser humano no centro do universo, pois essa é uma das várias teses relativas à posição do homem no cosmo, havendo pensadores ilustres que se limitam a considera-lo um ente finito que se distingue dos demais por sua autoconsciência. O humanismo tem múltiplas e variadas dimensões, como o sabe qualquer leitor atento mesmo de compêndios elementares de Filosofia.

                              Não cabe aqui dissertar sobre a problemática da consciência, se ela é uma originária instauração divina, ou o resultado final de uma progressiva evolução física ou natural, porque o que importa é verificar que ela é uma propriedade ou requisito próprio e exclusivo do ser humano, o que justifica tenha ele uma vida diferente da dos outros animais.

                              Que significa “dignidade da pessoa humana”, a que se refere a Lei Maior, senão uma existência pessoal fundada em valores que cada vez mais a enriqueçam tanto no plano do desenvolvimento material como no espiritual, desde as aspirações religiosas às artísticas, desde as da vida comum às científicas?

                              Para tanto o homem não pode deixar de se utilizar da natureza para atingir melhor qualidade de vida, o que implica, muitas vezes, a necessidade de absorver ou alterar determinados componentes da natureza para converte-los em “bens de vida”. Tobias Barreto, no seu exagerado “culturalismo”, chegava a dizer que a cultura é “a antítese da natureza, no tanto quanto ela importe uma mudança no natural, no intuito de faze-lo belo e bom”.

                              Preferindo ver a natureza e a cultura como entes complementares, não há dúvida que esta se serve daquela para realizar objetivos essenciais ao indivíduo e à sociedade. É assim que sacrificamos certos elementos do meio ambiente, como, por exemplo, parte de uma floresta para construção de uma usina elétrica, ou uma catarata estupenda, como a de Sete Quedas, para que houvesse a Binacional de Itaipu, sem a qual não se compreende o desenvolvimento do Brasil.

                              É à luz, pois, de um quadro global de valores, tanto da natureza como da vida humana, que deve ser situada a defesa do meio ambiente pela sociedade, e, por conseguinte, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário, não tendo sentido que, ao faze-lo, prevaleçam motivações resultantes do fanatismo ecológico. Tenho tido notícia de tão exageradas e descabidas defesas do meio ambiente que, se eles tivessem prevalecido na história do povoamento e desenvolvimento do Brasil, ainda estaríamos vinculados às estreitas fronteiras do Tratado de Tordesilhas...

                              Sinto-me à vontade ao criticar certos excessos do Ministério Público porque fui um ardoroso defensor de suas atuais atribuições e prerrogativas, quando presidi a secção relativa ao Poder Judiciário no seio da “Comissão Arinos”, incumbida de elaborar o projeto da nova Constituição, contando com a preciosa colaboração do hoje Ministro Sepúvelda Pertence, do Supremo Tribunal Federal. Então, como agora, pensamos no uso e não no abuso do poder.

13.03.2004