CULTURALISMO REVOLUCIONÁRIO
MIGUEL REALE
A palavra “cultura” é, sem
dúvida, um dos termos de mais corrente emprego em nosso tempo, tanto nos domínios
da filosofia como nos da política, das ciências, das artes e da vida
cotidiana. É geral a convicção de que sem ela os indivíduos e os povos não
podem se realizar plenamente, ocupando espaço significativo no mundo.
O sentido prevalecente de cultura refere-se ao conjunto de noções e
conhecimentos que possibilitam o acesso aos valores revelados nos múltiplos
campos de nossa atividade, sendo uma pessoa tanto mais culta quanto mais seja
capaz de deles participar. Significado correlato e complementar desse é o
relativo ao próprio acervo ou cabedal de idéias e de bens que a espécie
humana logrou acumular através do tempo, sendo, não raro, identificado com o
de “civilização”.
Por aí se pode compreender a genialidade do filósofo italiano António
Gramsci, secretário-geral do partido comunista italiano e partidário fervoroso
de Lenine, quando, no cárcere, no qual foi mantido por muitos anos por
Mussolini, concebeu, com base no fenômeno cultural, a que se pode considerar a
2ª via do marxismo. Como é notório, Karl Marx apresentava a luta de classes como a via por excelência da conquista do poder
pelo proletariado, tese central na praxe revolucionária
leninista. Pois bem, sem prejuízo dessa idéia, como lembro em meu livro
O Estado Democrático de Direito e o
Conflito das Ideologias, Gramsci escreveu na prisão o livro em que
apresenta a conquista dos órgãos culturais pelos comunistas como o caminho
mais indicado para o alcance do poder, fundado na idéia de que quem domina a
cultura domina o Estado. Surgia assim o “culturalismo revolucionário”,
erroneamente apontado como a nova diretriz da social democracia.
Esclarecido esse ponto, estamos em condições de compreender por qual
razão o Movimento Social dos Trabalhadores, MST, elege Gramsci como seu mentor
ideológico, não se contentando com a invasão inconstitucional das terras
produtivas ou não, mas se preocupando também em dar a seus adeptos consciência
da finalidade revolucionária de seus atos. Como se vê, ele age, ilegalmente,
como partido político sem registro,
à margem das autoridades oficiais, inclusive do Ministério Público. Basta
ponderar que o próprio presidente Luiz Ignácio Lula da Silva considerou o MST
“um dos movimentos mais respeitados e mais sérios do País”.
Já agora, não satisfeito com a distribuição de breviários e publicações
elementares ilustrativos dos propósitos políticos de seu programa de
assentamento dos trabalhadores rurais ou que figurem como tais, o MST alimenta o
ideal mais alto que poderia atingir.
Refiro-me à inauguração em Guararema, a 80 km. de São Paulo, da Escola Nacional Florestan Fernandes, visando educar militantes nas
áreas social e política, formando técnicos agrários, administradores e
pedagogos.
Esse curso, não reconhecido previamente pelo Ministério de Educação,
surge como uma “escola popular”
divorciada do ensino oficial, o que não impediu a presença de altas
autoridades federais em sua solenidade de instalação.
Quem reconheceu o verdadeiro objetivo dessa nova Escola foi o ilustre
professor Antonio Candido, um dos fundadores do PT e figura máxima da cultura
política da chamada Esquerda no Brasil. Em longo depoimento publicado na Folha
de São Paulo de 21 de janeiro último, o referido mestre elogia a escolha
do nome de Florestan Fernandes, cuja ação política, diz ele, foi “sempre
associada à sua condição de intelectual revolucionário independente”.
“Por tudo isso, acrescenta ele, acho que nada mais natural do que
evocar o seu nome num evento ligado ao MST, cujo ânimo de luta e cuja
oportunidade histórica se combinam bem ao que ele foi, porque o MST possui a
fibra militante e o alcance revolucionário que ele tanto prezava. Estou certo
de que o MST é um movimento historicamente decisivo, e Florestan devia pensar o
mesmo.”
Isto posto, nada é preciso acrescentar para demonstrar como o MST
desenvolve as suas atividades segundo as diretrizes fixadas por Antonio Gramsci
para o partido comunista italiano, sendo só na aparência exterior uma agremiação
democrática.
Dir-se-á que toda nova manifestação cultural é “revolucionária”,
mas é preciso distinguir. Uma coisa é o sentido crítico e inovador da
cultura; outra é dela se servir para determinado fim político-partidário.
Escrevo este artigo com justificada preocupação, pois, na minha longa
atividade filosófica, penso ter demonstrado que a cultura é um de seus temas
centrais, como exponho sobretudo em dois livros, Experiência
e Cultura, 2ª edição, 2.000, Editora Bookseller, Campinas, e Paradigmas
da Cultura Contemporânea, 2ª ed., 2.005, Editora Saraiva, São Paulo.
O que caracteriza a cultura é o amplo e variado espectro de suas
investigações, tanto sob o ponto de vista cronológico, desde o estudo do
homem pré-histórico, como no da pesquisa que se estende das ciências naturais
às humanas, das positivas às transcendentais.
Nada, pois, mais pernicioso do que reduzi-la a instrumento de uma
ideologia política que, optando por uma só via para condução da sociedade e
do Estado, abre campo propício ao totalitarismo.
12/03/2005