A  CONSTITUIÇÃO  E  O  CÓDIGO  CIVIL

 

MIGUEL REALE

 

                   Os cultores da Ciência Jurídica têm observado que, nas últimas décadas, os conceitos fundamentais do Direito Civil vêm sendo estabelecidos, prioritariamente, no texto mesmo das constituições, o que leva a se falar na “constitucionalização do Direito Civil”. Esse fato é da maior importância para o processo da democratização do País, tendo o insigne Pontes de Miranda salientado que “a passagem dos direitos e liberdades às constituições representa uma das maiores conquistas políticas da invenção humana, invenção da democracia.”

                   A participação eminente da Constituição de 1988 no domínio das relações civis merece nossa especial atenção, a começar pelo Art. 1º, que, entre os fundamentos da República Federativa do Brasil, situa “a dignidade da pessoa humana”, a qual, por essa razão, constitui o pressuposto básico de todo o ordenamento jurídico.

                   Se lembrarmos que, no Art. 5º da Carta Magna, são consagrados outros preceitos civis fundamentais, como, por exemplo, o da liberdade de associação, o da reparação do dano moral, o da inviolabilidade da vida privada e da imagem das pessoas, a função social da propriedade; e que o Art. 226 estabelece os princípios constitutivos da instituição da família, podemos afirmar que, no Brasil, atinge o mais alto grau a constitucionalização do Direito Civil.

                   Assim sendo, o novo Código Civil não podia deixar de atentar para esse fato essencial, o que sobremaneira o distingue do Código Civil de 1916 que todo ele se situava na área do Direito Privado, visto como a Constituição de 1891 não cuidava da problemática social.

                   Equivocam-se redondamente, a meu ver, os intérpretes do Código Civil de 2.002, segundo os quais este não teria abandonado as diretrizes da Lei revogada, no que se refere aos pressupostos fundamentais, como passo a demonstrar.

                   Em primeiro lugar, ao contrário dos juristas alemães denominados pandectistas, que pretendiam resolver todos os problemas jurídicos somente mediante categorias jurídicas – tal como se dá com o Código Civil alemão de 1900, o BGB – os elaboradores da nova Lei Civil brasileira optaram pela compreensão do Direito em função de princípios jurídicos e metajurídicos, como os da eticidade e da socialidade.

                   Daí a conseqüência de novo entendimento do que seja “sujeito de direito”, não mais concebido como um indivíduo “in abstracto”, em uma igualdade formal, mas sim em razão do indivíduo situado concretamente no complexo de suas circunstâncias éticas e sócio-econômicas.

                   Reflexo dessa mudança de perspectiva, é o que se dá nos artigos de abertura do novo Código Civil, onde – ao contrário do código revogado, que declarava “todo homem” capaz de direitos e obrigações na ordem civil, o ora em vigor prefere se referir a “toda pessoa”, acrescentando que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”.

                   Pequena diferença aparentemente, mas que representa profunda mudança na colocação inicial da vida jurídica, uma vez que a palavra homem tem o sentido genérico e abstrato de indivíduo, ao passo que a apalavra pessoa já indica o ser humano enquanto situado perante os demais componentes da coletividade. Efetivamente, o conceito de pessoa resulta da relação do eu com outros eus, o que distingue o ser humano de todos os outros animais.

                   Além disso, o Código Civil atual dedica, logo a seguir, todo um capítulo aos “direitos da personalidade”, matéria não prevista na legislação anterior, estatuindo o Art. 11 que tais direitos são “intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”.

                   Note-se que não é feita uma enumeração, ainda que exemplificativa, dos direitos da personalidade, que são todos aqueles que constituem elementos componentes intangíveis da pessoa, de conformidade com as conquistas do processo histórico-cultural que assinala o progresso da sociedade civil, em constante correlação complementar com a instituição estatal.

                   É esse sentido de complementaridade que explica a crescente convergência do Direito Público e do Direito Privado, não tendo razão de ser o primado de um ou de outro, pois ambos compõem o processo dialético da positividade jurídica através da história, obedecendo às diretrizes emergentes dos valores eminentes que caracterizam cada civilização, e que formam o que denomino invariantes axiológicas. A principal delas é a idéia de pessoa humana, em meus livros apresentada como “valor fonte” de todos os valores. Nada de extraordinário que seja ela o valor básico de todo o ordenamento jurídico, sobretudo do civil.

                   Por outro lado, é o apontado sentido de complementaridade que explica o duplo processo que, em nossos dias, atua na experiência jurídica, ora como “privatização do Direito Público” – como, por exemplo, o § 1º do Art. 173 da Carta Magna que sujeita certas empresas públicas ao regime jurídico das empresas privadas – ora como “constitucionalização do Direito Civil”, como o faz o já lembrado Art. 226 da Constituição sobre a organização da família.

                   Isto assente, compreende-se por qual razão a Lei Maior, em seu art. 5º, se refere, consoante já observei, a grande número de figuras e institutos jurídicos do Direito Civil, visando sempre proteger a pessoa humana de atentados oriundos quer de nossa própria sociedade civil, quer do Estado Nacional, ou, em nossos dias, da chamada globalização, que os pensadores franceses preferem acertadamente denominar mundialização, pois aquela palavra dá idéia de compressão sobre todos os países do planeta, cujo direito de autodefesa deve ser respeitado.

                   Cumpre ainda observar um ponto relevante que é a proclamação pela Constituição logo no Art. 1º da “livre iniciativa” como um dos fundamentos da República, ao mesmo tempo que, no Art. 37, exige que o exercício do poder pela administração pública deve obedecer aos princípios de moralidade, legalidade e impessoalidade. Essa dupla exigência repercute no Código Civil, cujo Art. 421 consagra a “liberdade contratual”, mas condicionada pela “função social do contrato” e pela “boa-fé” por parte dos contratantes. Dessarte, a ambivalência da liberdade e de seus limites ético-jurídicos está  na base da Constituição e do Código Civil, em uma sintonia que constitui apanágio do ordenamento jurídico pátrio.

8.XI.03