O BRASIL E A CHINA
MIGUEL
REALE
Até a queda do Muro de Berlim e a súbita debacle do “socialismo
real”, não se considerava compatível com os imperativos da razão e da
teoria político-constitucional um governo representado pela coligação de
partidos antagônicos, um neoliberal de mãos dadas com um comunista.
Respeitava-se um mínimo de coerência ideológica no exercício do poder
estatal, admitindo-se apenas parciais concessões no mundo das idéias, sem
serem afetados os pontos essenciais dos respectivos programas.
Muito embora as agremiações políticas continuassem distintas pela
preferência dada a diversas diretrizes político-sociais, vieram predominando
cada vez mais acordos baseados tão somente na convergência de determinados
interesses, com as mais diversas partilhas no plano da ação governamental.
Pode-se dizer que assistimos ao fim da história político-constitucional
caracterizada pela permanente sintonia entre valores de ordem teórica e prática,
em virtude da opção ditada pelas mais contraditórias e pragmáticas linhas de
interesse, de forma a alcançar a fruição do poder, convertida em objetivo predominante e final dos
partidos, como está acontecendo nos países europeus de regime parlamentarista.
Há, todavia, casos em que se vai além de acordos ou composições
concluídas no seio dos Congressos, operando-se verdadeiras fraturas na
estrutura mesmo do Estado que passa a ter
duas faces institucionais
contrapostas, como está acontecendo no Brasil e na China.
A começar por esse gigantesco país asiático, verificamos que ele tem
duas existências pragmaticamente conjugadas, apesar de serem antagônicas no
plano das idéias, uma representada pela “ditadura
comunista” uma das mais violentas do mundo, operando despoticamente
“interna corporis”; e uma outra que se projeta internacionalmente como “domínio
da livre empresa”, regida, no campo econômico-financeiro, pelas leis do
mercado seguidas nas nações democráticas.
É essa duplicidade de feições que põe em risco todas as relações
com a China, a qual é, de um lado, uma arbitrária potência político-militar,
e, de outro, um poderoso parceiro econômico, comprometendo-se a decidir e a
agir como tal, segundo os padrões vigentes no Ocidente, com base na livre
iniciativa, com a mais absoluta promessa de obediência ético-jurídica aos
negócios e obrigações por ela realizados.
Assim sendo, estamos perante duas entidades geográficas distintas,
coexistindo a negação mais completa dos direitos da personalidade individual
com o mais declarado e assumido empenho de respeitar o livremente pactuado pelos
indivíduos que a compõem.
Apesar das gigantescas diferenças que as separam, Brasil e China têm
muito em comum, a começar pela existência da maior parte da população que é
excluída dos bens que a ciência e a técnica hoje propiciam.
No que se refere ao regime político e aos problemas sociais as analogias
são impressionantes, pois também o povo brasileiro, “mutatis mutandis”,
apresenta também duas faces distintas, correspondentes às diversas forças e
objetivos em conflito no Partido dos Trabalhadores, o qual, no tocante aos
problemas econômico-financeiros é liberal
e individualista, enquanto é socialista
e estatizante no que se refere à ideologia política por ele proclamada.
Na realidade, o PT nasceu com a finalidade precípua de destruir o
sistema capitalista, mediante a luta de classes e todos os processos de
conquista do poder estatal.
O prezado amigo e confrade José Pastore com razão pergunta: “Como
conciliar o PT dos 'três mosqueteiros' (Palocci, Furlan e Rodrigues), que fazem
tudo para garantir aos investidores liberdade de ação e direito de
propriedade, com o PT de vários outros ministros, que incentivam a invasão de
terras e órgãos públicos e privados, que desejam submeter o conteúdo das
universidades às 'organizações de base', que querem garrotear a cultura e a
imprensa, que nomeiam milhares de dirigentes sindicais para funções técnicas,
que tratam os bens do governo como de sua propriedade, e que usam recursos das
empresas estatais para acirrada propaganda política?”
Em artigo publicado neste jornal, em 15 de janeiro do corrente ano, já
tive ocasião de demonstrar que o PT tornou sua a doutrina do grande líder
comunista leninista italiano Antonio Gramsci, o qual veio dar ao marxismo a missão
de superar o capitalismo graças à conquista dos valores culturais que lhe
servem de base. Na linha desse projeto político, o presidente Luiz Ignácio
Lula da Silva considerou o MST “um dos movimentos mais respeitados e mais sérios
do País”.
Nesse sentido o MST acaba de atingir o ponto mais alto de sua atividade
cultural, inaugurando em Guararema a Escola Nacional Florestan Fernandes,
destinada a conferir diplomas de curso superior, cujo objetivo é subordinar a
educação, em todos os seus graus, aos interesses das massas, e não aos das
oligarquias capitalistas dominantes.
Tão relevante e decisiva é essa iniciativa que a ela não podia faltar
a palavra glorificadora do professor Antonio Candido, o grande líder da cultura
da Esquerda no Brasil. Em discurso que tomou toda uma página da “Folha de São
Paulo”, o referido mestre enalteceu a homenagem prestada a Florestan
Fernandes, cujos ideais corresponderiam aos do MST, “que possui a fibra
militante e o alcance revolucionário que ele tanto prezava”.
Eis ai a outra face do atual governo, no qual o MST pode ser um partido
político sem registro, e manter um imenso quadro de ensino, desde a cartilha
elementar à universidade, totalmente
desligado do Ministério da Educação.
12/02/2005