AUTORITARISMO E CENTRALIZAÇÃO
MIGUEL REALE
Conforme tem sido alertado pela midia,
nos últimos tempos, são manifestas as tentativas de autoritarismo e de
centralização por parte do Governo Federal, não satisfeito com os poderes que
lhe confere a Constituição de 1988.
Uma questão da máxima relevância se refere à estrutura de nosso federalismo, um dos pontos em que o Brasil, desde a Carta de 1946,
vem introduzindo valiosa contribuição no plano do Direito Constitucional,
dando à nossa Federação uma estrutura diversa da vigente nos Estados Unidos
da América.
Efetivamente, enquanto na grande República do norte a organização político-administrativa
do País é dual, figurando em sua Constituição apenas a União e os Estados
federados, no Brasil temos um ordenamento trino, uma vez que a organização e a
competência de nossos Municípios se acham também estabelecidas nas matrizes
mesmas de nossa Carta Magna.
Dessarte, nossa Constituição estabelece originariamente os poderes da
União, dos Estados e dos Municípios, declarando os poderes atribuídos a cada
um deles, bem como aqueles que lhes cabem em comum.
Pois bem, é essa cautelosa distribuição de competência que está
sendo ameaçada pelo Projeto de Lei nº 3.884/04 enviado pelo Presidente da República
ao Congresso Nacional, no dia 30 de junho último, com urgência
constitucional, visto pretender regulamentar o artigo 241 da Constituição,
no que se refere aos “consórcios públicos”
que podem ser assinados por nossos três entes federados.
Não se nega a competência da União para essa disciplina, mas, em nosso
Direito, como consta do artigo 278 da Lei de Sociedades Anônimas, a palavra
“consórcio” designa uma entidade constituída tão somente “para executar
determinado empreendimento”, não
tendo personalidade jurídica.
Ao
contrário, no referido Projeto presidencial, o consórcio público pretendido
passaria a ser “pessoa jurídica de
direito público que integra a administração indireta de cada um dos entes da
Federação associados”, como dispõe o Inciso VIII de seu artigo 5º.
O pior é que se conferem a esse consórcio poderes que vêm subverter
nosso sistema federativo, permitindo, como demonstrarei, que a União, por vias
transversas, possa interferir em atividades da competência privativa dos
Estados e Municípios.
A competência dos consórcios públicos é imensa, conforme o demonstra
o Art. 3º do Projeto, abrangendo numerosos itens, que vão desde a prestação
de serviços, inclusive de assistência técnica para execução de obras e
fornecimento de bens à administração direta ou indireta, até a instituição
e funcionamento de “escolas de governo” (sic),
o gerenciamento de recursos hídricos, e
a pesquisa e desenvolvimento urbano, rural e agrário! Nem faltam disposições
que outorgam aos consórcios o planejamento e gestão dos serviços e recursos
da previdência social dos servidores de qualquer ente da Federação, assim
como o desenvolvimento urbano, rural e agrário.
Além disso, é prevista a delegação
de competências dos entes federados, tudo à margem do estabelecido na
Constituição, quanto aos poderes de cada um deles, sendo pacífico que competência
não se delega.
Essencial é verificar que os mencionados consórcios estão armados do
mais amplo poder, tal como o de promover
desapropriações ou instituir servidões que sejam consideradas necessárias
ao desempenho de suas finalidades, graças a anterior
declaração de utilidade ou necessidade pública ou de interesse social. (Art.
10, Inciso II).
Além disso, é-lhes conferido o poder de cobrar e
arrecadar tarifas e outros preços públicos pela prestação de serviços,
tudo à margem de autorização legal específica (Art. 3º, § 2º). Na
realidade, são-lhes atribuídos poderes
próprios dos entes federados, qual seja o de “outorgar
concessão, permissão ou autorização de obras e serviços públicos.
Quem não percebe que o consórcio público é, inconstitucionalmente,
equiparado às três Unidades que compõem a nossa Federação, o que só
poderia ser feito mediante emenda constitucional ?
Entra pelos olhos que uma das finalidades visíveis do Projeto é, a meu
ver, superar o estatuído no § 1º do artigo 24 da Lei Maior, segundo o qual,
“no âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á
a estabelecer normas gerais”.
Nessa ordem de idéias, cumpre advertir que, sempre a pretexto de
“prestação de serviços públicos por meio de gestão associada”, a União,
como parceira do “consórcio público”, pode interferir
em questões locais dos Estados e Municípios, até mesmo em assuntos
pertinentes à proteção do meio ambiente (Art. 3º, VI) ou na gestão e proteção
de patrimônio paisagístico ou turístico comum (Inciso IX).
A União, como “consorciada”, poderá participar e atuar no
gigantesco quadro de atribuições supra exposto. (Art. 2º do Projeto e seus
incisos). Como ela integra o órgão supremo do consórcio público que é a Assembléia
Geral, composta exclusivamente pelos Chefes do Poder Executivo dos
entes consorciados, bem fácil é prever como ela terá sempre supremacia, ora se
compondo com o Estado, ora com o Município, ou impondo a ambos a sua vontade.
Bem se pode imaginar, em verdade, como, em virtude do poder político-financeiro
da União, a bem pouco ficaria reduzida a autonomia dos Estados e Municípios.
Ora, no meu entendimento, essa intervenção oblíqua na vida adminsitrativa dos
Estados e Municípios, conflita, ademais, com o disposto, em matéria de intervenção,
com os Arts. 34 e 35 da Carta Magna.
Por outro lado, o emprego do consórcio público pretendido poderá
privar os Estados de competências
privativas, como por exemplo, a de, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações e microregiões, de
conformidade com o que lhes atribui o § 3º do Art. 25 da Lei Maior.
Em conclusão, a lei que pretende instaurar os programados consórcios públicos
visa, inconstitucionalmente, alterar os limites de competência dos três entes
que compõem a Federação brasileira, concentrando na União todos os poderes
da República.
ERRATA
– No último artigo sobre Integralismo, referi-me, erroneamente, a Rockfeller,
quando deve ser Rothschild.
11/09/2004